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Nosso ponto de vista: Genocídio, Línguas Indígenas e Cultura

A ONU declarou 2019 como o Ano Internacional das Línguas Indígenas. Em comemoração à data, o Conexão UFRJ publica um artigo elaborado coletivamente por estudantes do Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas, oferecido de forma pioneira pelo Museu Nacional. Os nomes dos autores estão ao final do artigo.

Para começarmos a pensar no ensino e na pesquisa de língua indígenas, não podemos deixar de lado a iniciativa que os próprios indígenas tiveram e têm para manter a sua cultura e a sua língua vivas. É necessário também ressaltar que essa demanda vai além do “Estatuto do Índio” (Lei no 6001, de 1973) e tem como seu suporte adequado a Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 231, diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à união demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Partindo dessa visão, podemos conceber a construção de uma metodologia que permita ao professor indígena trabalhar a pesquisa desde os primeiros anos de ensino, para que os alunos construam e percebam a realidade onde eles interagem como sujeito. Nessa possibilidade, o professor traz para dentro da sala de aula algumas particularidades discursivas e linguísticas que são usadas pelos alunos, incentivando-os para o uso da língua, motivando-os para indagações, questões e comparações, que são tão importantes para a pesquisa e a criatividade.

Esse tipo de trabalho favorece aos alunos a manutenção da língua que eles falam e usam para pensar, para sonhar, para se comunicar uns com os outros, para agir no mundo. Estudar a língua faz parte da identidade linguística e cultural e, assim, estudar a língua é como ser construtor da sua própria história, do seu perfil, em um processo de construção que se dá dentro de uma relação sócio-histórica. Ensinar e pesquisar línguas e culturas significa que não podemos estudar uma sociedade sem falar dos indivíduos e suas manifestações. Significa que, quando falamos de identidade, não podemos deixar de lado a linguagem: essas são imbricadas e não serão algo acabado; sempre serão algo em constante movimento, que se constrói no dia a dia.

Os Tikuna são um povo que vive em três países (Brasil, Peru e Colômbia). Nossas experiências estão ligadas a um trabalho que vem sendo realizado, no Brasil, pela Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues (OGPTB), que atua em uma área extensa, que abrange vários municípios do Alto Solimões no estado do Amazonas, na fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru: municípios de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá e Tonantins*.

Foto colorida dos indígenas Tikuna em sala de aula.
Os Tikuna em sala de aula: Diogo Vasconcellos (Coordcom / UFRJ)

Nessa área extensa, concentra-se aproximadamente a maior parte da população Tikuna, que, segundo levantamento atual, está em 58 mil indivíduos. Nesse contexto, os Tikuna vêm lutando pela manutenção da sua língua, em um trabalho em que existem parcerias institucionais. Anos atrás, foi feito um convênio entre a OGPTB e a Universidade do Estado do Amazonas(UEA), para a formação, em nível superior, de um grande conjunto de professores indígenas, por meio de um projeto-piloto apresentado pela Organização à Universidade, para que esses professores indígenas pudessem trabalhar nas suas próprias línguas, repassando conhecimentos e levando em conta o fato de que a maioria das crianças é falante da língua Tikuna.

A política de manutenção para o povo Tikuna traz as questões de identidade, que são fundamentais nos estudos linguísticos, pois estudar a língua é, sem dúvida, estudar o ser humano, sua constituição como pessoa, é estudar como essa pessoa se constrói dentro das relações sócio- históricas e culturais. As relações entre linguagem e identidade são indissociáveis, pois como poderíamos falar de linguagem sem falar das pessoas que as usam? Ou como pensar nas várias manifestações da linguagem humana sem lidar com a cultura tradicional?

Temos que compreender que trabalhar com língua e cultura permite refletir sobre as realidades indígenas e que isso explica a complexidade que representa o ser indígena na atualidade, segundo sua própria visão. O povo indígena Tikuna apresenta uma situação linguística marcada pelo reconhecimento de manter sua língua nativa por meio do seu ensinoxa0 na escola indígena. A situação que temos diante de nós é a de um povo indígena que luta por sua manutenção, pela sua cultura e sua língua, que está em uma constante transformação, bem como luta pelos seus direitos, os direitos que a Constituição lhe garante.

Foto colorida dos estudantes Tikuna, ao lado da professora Marília Facó e do produtor cultural Nicolas Alexandria.
Os estudantes Tikuna, ao lado da professora Marília Facó e do produtor cultural Nicolas Alexandria (à direita). Foto: Diogo Vasconcellos (Coordcom / UFRJ)

Muitas vezes, os Tikuna expressam que, apesar de falarem português como segunda língua (L2), temos nossa língua como a primeira língua (L1), porque o português não é nossa língua; é apenas um veículo de comunicação com outros povos, para lidar com esses outros povos, com os quais sempre estaremos em contato. Apesar de falarem português ou espanhol, os Tikuna parecem considerá-la como uma língua imposta a eles, uma língua emprestada, que não pertence à sua cultura (à nossa cultura). Para as lideranças, para o mais importante da aldeia, para os mais velhos e até para os(as) alunos(as), aprender sua língua nativa significa manter a língua viva, para se conectar com sua origem. Na visão de todos, falar e estudar a língua faz parte do processo de construção da identidade, pois a língua é um aspecto fundamental: é incorporada na escola, mas para a vida em sociedade.

Finalmente, nossa experiência nos leva a refletir que a Língua (agora em letra maiúscula) é que constrói a nossa identidade e a do grupo. A postura do grupo indígena dá o direito ao nosso discurso, às nossas opiniões e ideias sobre quem nós somos. A Língua é nós, com ela construímos a nossa identidade. Para atender a essa demanda da Língua, é necessário fomentar o surgimento e a consolidação efetiva, nas escolas das aldeias, do estudo de língua indígena, principalmente em locais distantes dos centros já consolidados, e expandir mais seu ensino dentro dos cursos superiores oferecidos para um público no qual o indígena está presente e interage com um futuro que levará, juntos, o conhecimento tradicional e também o científico, dito universal.

Genocídio

As políticas públicas atuais do nosso país nos trazem séries de problemas que nos levam a refletir sobre o futuro dos povos minoritários que têm uma língua e cultura e uma forma de pensar diferente da forma de pensar de uma sociedade dita não indígena. Nós, da etnia Tikuna, considerado o maior grupo indígena da Amazônia brasileira ou até mesmo o maior do Brasil, estamos localizados na região Amazônica, no estado do Amazonas. Defendemos e temos uma visão diferente dos não indígenas, porque consideramos a nossa língua uma força maior para preservar os nossos modos de crer e conhecer, a nossa cultura, a nossa tradição socioeconômica e cultural.

Em vista a tudo isso, podemos dizer que nós, indígenas, temos e somos a riqueza da nossa terra, podendo contribuir para a maior riqueza pluricultural da nossa região, do nosso país, do mundo. Nós indígenas (os indígenas de diferentes etnias aqui no Brasil) somos mais numerosos na Amazônia. Grande parte das nossas lutas é pelo nosso direito, o direito de manter nossa língua, nossa cultura, manter a floresta de pé, porque ela é nossa vida. Historicamente, os povos indígenas vêm sendo dizimados para a posse, pelo não indígena, da terra e dos rios. Está na hora de deter o genocídio e trabalhar a favor da vida. Nesse sentido, consideramos da maior importância a iniciativa da Unesco, que declarou 2019 como o Ano Internacional das Línguas Indígenas.

Quando nos referimos a todo acontecimento da administração governamental do nosso país, refletimos que a sociedade não indígena tende a minimizar a nossa riqueza, como justificativa, em nosso país, para políticas de extermínio, e não de preservação do que torna o Brasil mais rico em termos de cultura e tradições. Em nome de todos os que lutam para que isso não aconteça, devemos nos unir e juntar forças; não apenas os Tikuna, mas sim todos os povos indígenas que ainda resistem por meio da sua cultura, passada de geração em geração, para que isso não fique apenas numa história contada para a geração do futuro. A tentativa de extermínio não pode se tornar real. A Unesco, como uma instituição que trata dessas questões, vem tendo um papel principal em termos de dar forças para uma boa reflexão pela sociedade que vem tentando o extermínio.

*Existem também comunidades Tikuna nos municípios de Jutaí e Fonte Boa (Alto Solimões), nos municípios de Tefé, Coari, Beruri, Anamã, Manacapuru (Médio Solimões) e ainda no Baixo Solimões, em Manaus e entorno.

Autores:

Bernabé Bitencourt Serra*, Damião Carvalho Neto**, João Clemente Gaspar**, Lourdes Afonso da Silva**, Mendison C. Agostinho**, Nailson Pissango Salvador**, Tiago Berezinho Anastácio** (membros da etnia Tikuna)

*Mestre em Linguística e Línguas Indígenas – PROFLLIND-MN/UFRJ)

**Mestrandos em Linguística e Línguas Indígenas – – PROFLLIND-MN/UFRJ)