Categorias
Conexão Sociedade

Mais militarização da vida, menos direitos

As universidades federais, estaduais e os institutos de pesquisa localizados do Rio de Janeiro criaram, em março, o Fórum de Direitos Humanos para acompanhar a intervenção militar no estado na área de segurança.

Segundo Vanessa Berner, professora titular da Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ e coordenadora do fórum, o objetivo é mapear o conhecimento existente sobre o tema e fazer um diagnóstico de todas as violações dos direitos humanos a partir do decreto da intervenção. Até porque, após dois meses, o número de chacinas dobrou em comparação com o mesmo período de 2017, de acordo com o Observatório da Intervenção.

Imagem colorida de Vanessa Berner, professora titular da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
Vanessa Berner, professora titular da Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ. Foto: IEA-USP

“Já temos grupos de pesquisa formados que estão fazendo levantamento de dados sobre segurança pública, trabalhando na efetivação de direitos e também em projetos de extensão na área de assistência jurídica, por exemplo”, revelou Vanessa.

O fórum também realizou um ato sobre direitos humanos e democracia, com a presença de Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Na ocasião, o reitor Roberto Leher reafirmou o compromisso ético da universidade pública com a sociedade, especialmente no campo dos direitos humanos. Veja o vídeo.

Nesta entrevista ao Conexão UFRJ, a coordenadora do Fórum de Direitos Humanos disse ainda que países que sofreram intervenções militares, como o México ou o Haiti, substituíram a política de efetivação de direitos por uma lógica de guerra contra o inimigo, que é sempre o despossuído.

A pesquisadora também falou sobre a onda de ódio no Brasil, que agrava a situação de desrespeito aos direitos humanos e é alimentada pelo poder instalado em Brasília.

Conexão UFRJ – Quais as principais ações que estão sendo ou serão implementadas pelo Fórum de Direitos Humanos?

Vanessa Berner – Já organizamos duas ações importantes. A primeira foi o evento sobre direitos humanos e democracia, com a presença de Adolfo Pérez Esquivel [Prêmio Nobel da Paz] na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. No ato, ocorreu uma homenagem à vereadora Marielle Franco e ao seu motorista, Anderson Gomes, assassinados no mês de março. Outra atividade foi a participação do fórum em um evento na Maré, organizado pelo Observatório de Favelas, sobre política de drogas e os efeitos da intervenção militar em áreas excluídas e periféricas.

Conexão UFRJ – Ações como revista em mochilas de crianças a caminho da escola e as fotografias tiradas de moradores de favelas, sem qualquer motivação, mostram um quadro de possível agravamento da violação dos direitos humanos após a intervenção?

Vanessa Berner – Acho que sim. Na verdade, as ações de Garantia da Lei e da Ordem [GLO] já sinalizavam para essa violação de direitos, e isso se aprofunda com a intervenção. Durante a intervenção, ficam suspensas as leis estaduais de segurança pública.  Não temos mais um secretário de Segurança. Quem responde por ela é o general interventor nomeado pelo presidente da República. E essa militarização da segurança pública traz uma série de consequências relacionadas à maneira de atuar das Forças Armadas, a partir dos princípios da hierarquia, da disciplina e da defesa contra o inimigo. Quem é o inimigo numa intervenção desse porte em uma cidade como o Rio de Janeiro, que tem uma série de conflitos localizados em áreas de periferia? O inimigo pode ser qualquer um, até uma criança carregando uma mochila. Trata-se de uma lógica militar. É a militarização da vida.

Conexão UFRJ – Existem outras experiências no mundo de forças militares desempenhando tarefas de segurança pública? Que interesses estão por trás desse tipo de política de combate ao crime com o uso do Exército adotada em alguns países da periferia do capitalismo?

Vanessa Berner – A seleção do inimigo é feita pelo próprio capital. Em países como o México ou naqueles que sofreram intervenções por motivos pontuais de longa duração, como o Haiti, o que se faz é substituir essa política de efetivação de direitos por uma lógica de guerra contra o inimigo. A militarização é frontalmente contrária à efetivação de direitos, e nós, na periferia do sistema capitalista, somos os que mais sofremos. Mas há alguns que sofrerão ainda mais, e são aqueles que já não tinham direitos, os despossuídos. Fecha-se para eles mais uma porta. Esse é um efeito dos mais perversos da militarização da vida.

Conexão UFRJ – No Brasil, historicamente os excluídos são sistematicamente criminalizados. Como construir um sistema de proteção aos direitos humanos num país de legado escravista tão acentuado e que sempre enfrenta qualquer demanda das classes populares como um caso de polícia?

Vanessa Berner – Essa é uma questão crucial. O Brasil é um país que se constrói politicamente de uma forma extremamente conservadora. É um país fundado na escravidão. Não precisamos nem recuar para o Brasil-Colônia, basta olharmos para a história constitucional brasileira. A Constituição de 1824 tinha uma linda declaração de direitos, mas a existência da escravidão era aceita e defendida. Durante todo o período do Império houve uma série de lutas antiescravistas protagonizadas pelos próprios negros. É bom lembrar que no último 13 de maio a abolição da escravidão no Brasil completou 130 anos, mas naquele dia Ruy Barbosa, em discurso no Senado, corrigiu um colega e afirmou que foi o próprio negro que conquistou a sua liberdade.

Conexão UFRJ – A legislação brasileira, então, sempre dificultou a construção de um sistema de proteção aos direitos humanos?

Vanessa Berner – Sim, a legislação sempre atendeu a essa lógica da escravidão. Começa com a lei dos sexagenários, mas sabemos que não existiam escravos com mais de 60 anos, pois a média de vida era de 50. Era literalmente para inglês ver. Depois vamos ter o debate sobre tráfico negreiro e Lei do Ventre Livre. E sabe-se perfeitamente que essa lei tinha uma pegadinha. A criança nascia livre, mas permanecia como propriedade do dono da mãe até os 20 anos de idade. O Brasil vai construindo uma legislação gradual, que abole sem abolir nunca a escravidão. Depois vem a Lei de Educação Básica do período do Império, que proibia que os cativos e portadores de doenças contagiosas fossem alfabetizados e tivessem acesso à educação. A população negra no Brasil, concretamente, sempre foi jogada na periferia pela própria legislação, independentemente da existência de leis que aparentemente a beneficiavam. O grande debate após a abolição, no dia 14 de maio de 1888, era o que fazer com a população negra.

Conexão UFRJ – E o que foi feito?

Vanessa Berner – Criou-se a Lei da Vadiagem. Então, essa lógica de ações seletivas contra os negros tem origem histórica e foi muito bem instrumentalizada pelo Direito. Portanto, a luta para construir um sistema de proteção aos direitos humanos no Brasil sempre foi muito difícil. E silenciar as pessoas que sempre lutaram contra essa situação era uma necessidade do sistema.

Conexão UFRJ – O momento de intolerância e ódio promovido por forças conservadoras é um combustível a mais no processo atual de militarização da vida e de desrespeito aos direitos humanos? Como enfrentar tal situação?

Vanessa Berner – Sem dúvida que sim. Estamos passando por um ciclo de ódio que lembra muito o que foi a ascensão do fascismo na década de 1920 na Europa. Isso passa pelo recrudescimento do racismo, da xenofobia, da misoginia, da transfobia, da lesbofobia. Enfim, contra quem se dirige o ódio no país? Estamos em um ciclo de ódio que também é mundial e não sabemos no que vai dar. O que esse ódio trouxe de bom na história da humanidade? Nada. Trouxe guerras e miséria. Mas este é um momento do qual o poder instalado em Brasília se beneficia. E sobrevive alimentando esse “monstro”.

Conexão UFRJ – E qual a relação da intervenção militar no Rio de Janeiro com esse processo histórico?

Vanessa Berner – Divulgou-se recentemente o aumento do número de chacinas no Rio de Janeiro, apesar da intervenção. Quem são os chacinados? Onde eles vivem? Qual a cor da pele deles? Então, como construir um sistema de proteção aos direitos humanos a não ser com a ampliação do debate sobre raça, gênero e classe? A universidade e os institutos de pesquisa têm um papel fundamental na construção teórica desse debate para que ele atinja a práxis da nossa vida. Por isso, as universidades não podem, neste momento, silenciar. A nossa proposta não é fazer um monitoramento, e sim um acompanhamento para que busquemos soluções. Essa é a nossa perspectiva com a criação do fórum.