A arte é a mais recente vítima da onda de intolerância que corrói o país. Tudo começou com o cancelamento da exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Santander Cultural, em Porto Alegre, no dia 10/9. Com foco temático em diversidade sexual, a mostra reunia 270 trabalhos de 85 artistas e foi suspensa após protestos nas redes sociais liderados pelo Movimento Brasil Livre (MBL). A queixa era de que as obras, assinadas por nomes consagrados como Adriana Varejão, Cândido Portinari e Lygia Clark, faziam apologia à pedofilia e à zoofilia. Uma tentativa do Museu de Arte do Rio (MAR) de trazer a mostra para a cidade foi desautorizada pelo prefeito Marcelo Crivella.
Dois episódios posteriores confirmam que a livre expressão artística virou alvo preferencial de ataques dos ultraconservadores, cujas demandas vêm encontrando acolhida no aparato jurídico-policial. Em Campo Grande (MT), a polícia apreendeu uma tela exposta no Museu de Arte Contemporânea do Mato Grosso do Sul, sob a mesma acusação de apologia à pedofilia. E um juiz proibiu a peça Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, minutos antes da estreia, no Sesc Jundiaí, em São Paulo, em 15/9 – posteriormente, a exibição foi liberada pela Justiça em Porto Alegre.
Retrocesso atual lembra ditadura militar
Essas ações, segundo especialistas, configuram um cerco sem precedentes à liberdade de expressão e à arte desde o fim da ditadura militar. Carla Costa Dias, professora da Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ, considera o cenário muito preocupante.
“Estamos vivendo um período de retrocesso. Temos visto um movimento de direita crescente. O MBL é financiado por corporações exatamente para impor uma pauta ampla de cerceamento dos movimentos sociais. Esse mesmo grupo faz a apologia do que chamo de ‘Escola Com Censura’, que busca limitar a ação dos professores e o pensamento”, critica.
Ela ressalta que, no momento, o alvo maior dos ataques é a expressão artística que retrata a diversidade sexual. Segundo Carla, a leitura que esses grupos fazem das obras é completamente equivocada, mas o fato de a exposição abordar o tema abertamente e sem preconceitos incitou o ódio daqueles que promovem a LGBTfobia. “Na internet, esses grupos de direita são muito ativos e chegam a falar em um complô para impor uma pauta”, afirma.
Felipe Scovino, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, lembra que o Brasil tem um histórico preocupante de exposições fechadas e de peças teatrais e músicas censuradas, especialmente no período da ditadura militar.
“É terrível a gente voltar a conviver com esse tipo de ação de censura no tempo presente, sob alegações sem a menor razoabilidade”, frisa.
De acordo com Scovino, os agrupamentos ideológicos de extrema direita impõem uma espécie de modelo do ser humano: branco, católico e heterossexual.xa0 Qualquer expressão artística diferente causa um atrito entre o padrão estereotipado das relações humanas idealizado por esses grupos e a realidade como ela é. “Eles querem implementar quase um modelo fascista de mundo”, afirma.
Política cultural nas mãos das empresas
No caso particular da exposição Queermuseu, chamou a atenção de Scovino – que leciona Arte Contemporânea e Curadoria – a nota oficial do Santander, que classificou como clientes aqueles que foram impedidos de ver a mostra, e não de público ou espectadores.
xa0“Isso diz muito a respeito de como a cultura brasileira tem se aproximado de instituições financeiras, de grandes empresas do ramo de telefonia, que têm muito mais interesse em vincular a marca da empresa a possíveis clientes do que exatamente expor a diversidade que a arte e a cultura podem trazer como forma de debate”, sustenta.
Carla Dias concorda que o Estado está cada vez mais ausente da formulação de uma política cultural: “Na verdade, é importante reforçar que quem hoje é responsável por ela no Brasil é o setor privado. Portanto, não há uma política ampla, de fato, já que a Lei Rouanet não preenche essa função, nem se coloca como tal”.
Professora de Arte Africana, ela teme que a censura à diversidade sexual nas artes se estenda a outras áreas. “As disciplinas de Arte e Gênero e Arte Africana no nosso curso foram um avanço. Ou seja, estamos tentando abrir espaço para expressões artísticas diversas. Está havendo perseguição à arte, mas também aos terreiros. É um mesmo pacote de ações que representa uma ameaça grande à liberdade de expressão artística e religiosa”, denuncia.
A arte degenerada na Alemanha de Hitler
Os ataques intolerantes contra a arte no Brasil lembram, de algum modo, as ações do regime nazista, que chegou a organizar uma exposição em que classificava a arte moderna como “degenerada”.
Essa mostra, segundo Scovino, aconteceu num momento em que o nacional-socialismo estava em ascensão na Alemanha e Adolf Hitler chegou ao poder. Os artistas exploravam, pela primeira vez, o abstracionismo, na contramão de uma representação natural do mundo e das coisas, como desejava o regime. “Mas eram essencialmente de ascendência judaica e possuíam identidades que confrontavam as ideias do nazismo para uma nova Alemanha”, destaca.
No caso da exposição em Porto Alegre, segundo ele, o que estava em foco era a discussão da diferença, da alteridade. “É preciso perceber que o mundo não se estabelece apenas a partir de uma visão ideológica e falsa de que as pessoas devem ser como o outro quer que elas sejam”, reforça.
Carla ressalta que não dá para colocar a atual situação como se fosse exatamente igual à época do nazismo. Mas diz que realmente existe uma questão racial por trás dessas ações.
Para a professora, quando não se quer discutir as diferenças de gênero ou raçaxa0 numa exposição artística, se está dizendo que tais questões não devem entrar na pauta de debates do país.
“Acaba-se endossando, assim, a violência às pessoas que possuem outras formas de pensar e de se expressar. Então, na verdade, não é somente a arte que está sendo atacada. É todo um pensamento que questiona a visão tradicional e conservadora da família e da religião”, completa.