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Lógica industrial na educação fecha escolas no Rio de Janeiro

Você já parou para pensar sobre o que entende por educação de qualidade? Pode parecer estranho, mas existem diversas concepções de qualidade que disputam espaço dentro das políticas públicas que visam promover o avanço e a melhoria da educação. Contudo, uma noção específica de qualidade, demarcada historicamente e ligada aos interesses dos grandes agentes econômicos, domina e orienta a grande maioria dessas políticas de educação no Brasil. Isso foi o que mostrou a socióloga Rebeca Martins de Souza em sua dissertação de mestrado defendida no último dia 25/8.

A pesquisa, orientada pela professora Vânia Motta, da Faculdade de Educação da UFRJ, teve como objetivo fazer uma análise crítica dos discursos sobre qualidade da educação presentes em documentos da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro e em materiais oficiais sobre o modelo de Gestão Integrada da Escola (Gide), adotado oficialmente pelo Governo de 2011 até o final de 2016.

O estudo mostrou que a adoção de uma lógica que se espelhou em processos tipicamente industriais capitalistas, com critérios ligados à produtividade e à redução de custos, levou ao fechamento de mais de 200 escolas da rede pública estadual desde 2011.

“Nós buscamos analisar a materialidade e a historicidade dessa concepção de qualidade da educação difundida pela Secretaria, compreender a que práticas essa concepção se vincula e também entender como funcionam as ferramentas utilizadas pela Gide e o impacto disso no chão da escola”, explicou Rebeca.

A história por trás da ideia

Definindo especificamente essa noção de qualidade como “padrão capital de qualidade”, a pesquisadora traçou todo o percurso histórico do conceito, associando-o diretamente aos princípios de otimização dos processos produtivos de fábrica idealizados por intelectuais capitalistas como Henry Ford e Frederick Taylor no início do século XX. Trata-se de uma ideia de qualidade que está, portanto, fundamentalmente relacionada à lógica da produtividade e do controle do processo de produção.

Depois, a partir da década de 1970, com a crise estrutural do capitalismo, ocorre um processo de reestruturação produtiva que vai definir o modelo toyotista como o padrão a ser seguido por todas as indústrias ao redor do mundo, além da difusão do modelo neoliberal de Estado e da adoção da lógica gerencialista para dentro da administração pública. O “padrão capital de qualidade” toma o formato de “qualidade total”. Qualidade se torna, portanto, uma ideia que está ligada ao processo em si e que visa ao aumento da produtividade.

Imagem colorida de Rebeca Martins de Souza, socióloga.
Rebeca Martins de Souza, socióloga. Foto: Raphael Pizzino (CoordCOM / UFRJ)

“Até então, eu havia verificado que o termo qualidade poderia se referir a uma justificativa de uma ação, um produto ou um processo. A qualidade total, então, vai enfatizar o caráter processual para a elevação da produtividade por meio de mecanismos como foco na produção específica de um produto e terceirização do que não é a ênfase produtiva da fábrica, a quantificação da qualidade, o desenvolvimento de uma lógica meritocrática entre os trabalhadores e a precarização do trabalho”, elucidou a pesquisadora.

A partir disso, a lógica da qualidade total foi se infiltrando em outras instituições importantes como a escola, tema central da pesquisa. Segundo Rebeca, a análise histórica é fundamental para a compreensão do fenômeno.

“Sem a abordagem histórica e sem recorrer a conceitos como o de classe social, nós naturalizamos esses procedimentos sobre a escola. Buscando superar esse tipo de naturalização é que recorri a esse tipo de análise materialista histórica”, defendeu.

Os impactos no chão da escola

De acordo com Rebeca, a partir da implementação da lógica do modelo toyotista de produção nas instituições de ensino, ocorre uma série de mudanças significativas no ambiente escolar que afetam professores e alunos e promovem uma alteração da função social da escola.

Tendo em vista essa concepção específica de qualidade e seguindo modelos próprios da administração de empresas, de obtenção de metas e de quantificação da qualidade, são utilizados diversos mecanismos para a elevação da produtividade e a redução dos custos nas escolas. Há, por exemplo, uma modificação do papel do professor dentro da sala de aula. O profissional perde sua função de educador e passa a ser um gestor do conhecimento e do tempo, o que gera a perda de sua autonomia no ambiente de trabalho.

Imagem colorida sobre a reforma do ensino médio que provocou protestos de estudantes em todo o Brasil.
A reforma do ensino médio provocou protestos de estudantes em todo o Brasil. Foto: Rovena Rosa / Ag. Brasil

Além disso, instrumentos de controle do trabalho docente são implantados para otimizar os processos administrativos das escolas, ou seja, fazer mais com menos gastos. Segundo ela, no caso do Rio de Janeiro, houve a criação do “Pró-Gestão”, programa que visava melhorar a administração pública do Estado.

O projeto, financiado com empréstimos milionários concedidos pelo Banco Mundial, impactou também o setor da educação. A partir dele, foi criado o Conexão Educação, uma plataforma digital na qual o professor seria obrigado a lançar notas, frequência dos alunos e uma série de outras informações a respeito do seu trabalho.

Com esse processo de reestruturação da rede estadual, o estudo indicou a intensificação do sistema Conexão Educação como uma forma de controle no chão da escola. É através dele que a Secretaria está promovendo uma série de “otimizações”.

“Esse sistema verifica se tem pouco aluno em uma turma ou falta professor em outra e, a partir disso, se fecha uma turma ou se funde ela a outra. Pode-se até mesmo fazer a fusão de duas unidades. Com isso, houve uma série de fechamento de escolas, mais de 200 de 2011 até hoje. Há também a diminuição de alunos e a saída de docentes na rede estadual. No primeiro semestre de 2016 foram mais de 600 professores que abandonaram a rede por livre e espontânea vontade”, destacou Rebeca.

Reforma do ensino médio reflete lógica mercantilista

Imagem colorida de Vânia Motta, professora da Faculdade de Educação da UFRJ.
Vânia Motta, professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Foto: Raphael Pizzino (CoordCOM / UFRJ)

A pesquisadora também salientou que é central na lógica do capital para a educação formar trabalhadores com mão de obra mais barata. Dessa forma, incentiva-se a “descartabilidade dos conhecimentos” na escola por meio de disciplinas reduzidas e menos aprofundadas, além de uma formação mais técnica, voltada diretamente para o mercado de trabalho.

A reforma do ensino médio aprovada por Michel Temer em fevereiro deste ano é um exemplo disso. Para Vânia Motta, ela representa uma ameaça aos investimentos em educação pública e expressa “o retrocesso do retrocesso”, pois as duas anteriores já continham elementos regressivos.

“Há uma série de implicações quando se condiciona o currículo do ensino médio às necessidades do mercado local num país tão desigual socioeconomicamente como o nosso. Que mercado local é esse? Essa proposta se assemelha muito à lei 5.692, de 1971, que também tornava obrigatória a formação profissional no ensino médio. E foi um fiasco. Principalmente para a rede pública, onde não havia recursos. Houve um processo de sucateamento do ensino público que, até os anos 1960, era considerado de excelência”, disse Vânia.