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Cantar funk é crime? Projeto de lei no Senado diz que sim

Desde o nascimento até hoje, o funk é visto como um gênero de música marginal. Por ter uma história relacionada à juventude negra e pobre, foi alvo de críticas e preconceitos e, mesmo com o reconhecimento mundial, ainda sofre com ações elitistas que buscam excluí-lo da cena musical brasileira.

Em maio deste ano, uma proposta de lei que criminaliza o estilo musical funk recebeu 22 mil assinaturas de apoio pela ferramenta Ideia Legislativa, disponível no site do Senado Federal. Quando as assinaturas passam de 20 mil, a proposta é encaminhada para análise da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa.

O relator da proposta é o senador Romário, do partido PSB/RJ, e o mentor é o empresário paulista Marcelo Alonso. Em seu argumento, Alonso alegou que os bailes “são somente recrutamento organizado nas redes sociais por e para atender criminosos, estupradores e pedófilos”. Ele também afirmou que há venda e consumo de álcool e de drogas nos bailes, além de “orgia e exploração sexual, estupro e sexo grupal entre crianças e adolescentes, pornografia e pedofilia”.

Elitismo e racismo

Adriana Facina, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (MN) da UFRJ e estudiosa das práticas culturais em periferias e favelas, afirma que o funk sempre foi visto como um gênero musical marginal pela imprensa e pela classe média e elite.

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Adriana Facina, professora de Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ. Foto: Lusiane Sousa

“Acredito que, por trás dessa proposta, esteja uma tentativa não de criminalizar o funk em si como gênero musical, mas de criminalizar a juventude negra e pobre que vem sendo exterminada e é considerada grande inimiga pelas elites. Essa juventude é justamente a parcela da população mais explorada, mais oprimida, mas que tem um potencial de revolta, rebeldia muito grande. E o funk está associado a isso”, explicou.

A proposta de lei, além de tentar criminalizar o movimento, denomina o funk como “falsa cultura”. Para Adriana, não existem culturas falsas ou verdadeiras. A antropóloga ainda afirma que essa tentativa de desqualificá-lo como manifestação cultural é antiga.

“Em geral, as manifestações culturais negras passam por esse processo de desqualificação, de não serem consideradas como arte, cultura, como expressão legítima. E isso está associado ao racismo e ao elitismo de classe. Gosto é questão de classe social, de raça. Então acredito que seja uma expressão de elitismo e racismo desses que pedem a criminalização do funk”, disse.

Funk cresceu sem ajuda da indústria cultural”

Hermano Vianna, doutor em Antropologia Social pelo MN–UFRJ, foi o primeiro antropólogo a pesquisar sobre o gênero musical. Autor do livro “O mundo funk carioca”, publicado em 1988, ele considera o funk um movimento forte e importante social e economicamente.

“Todo esse mercado foi criado nas duas últimas décadas, sem ajuda da indústria cultural estabelecida. Não conheço outro exemplo tão claro de virada mercadológica na cultura pop contemporânea. O funk agora tem números claros que mostram uma atividade econômica importante, que pode, assim, ser levado a sério pelo poder público”, afirmou.

O funk carioca ganhou força a partir do fim da década de 1980, quando os bailes funks presentes nas comunidades cariocas se tornaram populares. Das favelas às ruas, os bailes saíram do morro e começaram a ser feitos a céu aberto. Depois de sair das comunidades para a cidade, o funk ganhou repercussão na mídia nacional e também internacional, apesar das constantes ameaças de proibição.

Foto de Hermano Vianna, doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ.
Hermano Vianna, doutor em Antropologia Social pelo MN–UFRJ. Foto: Rio Music Conference

Hoje, existem diversos DJs e MCs que se dedicam ao funk, o gênero musical mais tocado em festas de todas as classes sociais. Artistas revelados no funk têm carreira internacional, como é o caso das cantoras Anitta e Ludmila.

Opinião dos artistas que cantam funk

O DJ Malboro foi um dos protagonistas do começo do funk no Brasil. Participou desde cedo das disputas de DJs, bailes e viu o movimento nascer e crescer. Ele não acredita que a proposta seja levada adiante e chegue a se tornar de fato uma lei.

“Criminalizar algo que já é criminalizado só vai fazer o problema aumentar. Funk é cultura. Cultura tem que ser cuidada e discutida pelo Ministério da Cultura e não pela Secretaria da Segurança. As leis de proteção aos menores já existem. Agora, lei para criminalizar cultura que já é criminalizada, para mim, é perda de tempo. Porque vai continuar apenas do jeito que está. Os bailes irão continuar. Nas festas vai continuar a tocar funk”, frisou.

Apesar de discordar totalmente da proposta de criminalização, ele diz que tocar no assunto pode ter o seu lado bom. O DJ acredita que os artistas que fazem apologia à violência e ao sexismo em suas letras são o “tendão de aquiles” do movimento funk.

“Quando Marcelo Alonso levanta essa questão, ele nos faz parar para pensar em problemas que o próprio funk condena”, afirma. Malboro acredita que a proposta não deve se tornar lei: “Eu acredito que essa proposta de lei não vá adiante, porque funk é cultura. E cultura não pode ser criminalizada”.

Outros artistas se pronunciaram sobre o assunto. A cantora Anitta postou sua opinião no Twitter. Ela afirma que o funk gera trabalho e renda para muita gente. “Uma visitinha nas áreas menos nobres do nosso país e vocês descobririam isso rápido.” E conclui dizendo: “Invistam em educação primeiro.”

Funk, expressão da juventude negra

Enquanto uns veem o funk como “falsa cultura” ou cultura marginal e desqualificada, outros o tratam como um gênero musical importante e necessário. Adriana Facina explica que o funk é uma expressão artística da juventude negra brasileira que é pouco ouvida pela sociedade. Ela crê que seja importante dar espaço a esses jovens e diz que eles têm muito a dizer.

“O funk me fala de uma juventude com pouquíssima voz na sociedade, pois ela não está nos meios de comunicação, não está na produção cinematográfica, não está na televisão. Essa juventude está profundamente oprimida, enchendo nossos presídios. São os corpos que o Estado mata nas operações policiais. Então me interessa muito saber o que essa juventude pensa, o que ela gosta de fazer e o que ela gosta de ouvir”, concluiu.