O ano de 2017 teve seu início marcado pela explosão da barbárie cometida dentro dos presídios brasileiros. Foram duas chacinas e quase 100 mortos em Manaus (AM) e Boa Vista (RR).
A não tão surpreendente tragédia expõe a frágil e antiga estrutura de um sistema carcerário precarizado. O Brasil, segundo dados do relatório do Sistema Integrado de Informações Penitenciáriasxa0(Infopen), divulgados pelo Ministério da Justiça, possui a quarta maior população prisional do mundo: cerca de 607 mil presos vivendo em meio ao caos e diante de condições subumanas.
A atual situação coloca em xeque não apenas o investimento e o interesse por parte do Estado na recuperação dessa população carcerária, mas também a eficácia das atuais medidas de ressocialização.
O simples encarceramento e reclusão dentro de cadeias estariam surtindo o efeito necessário? Medidas socioeducativas de reinserção e recuperação dessa população mostram-se cada vez mais importantes.
Projeto socioeducativo aponta novos caminhos
Na UFRJ, o Instituto de Psicologia (IP) realiza um projeto de extensão, vinculado ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e a Adolescência Contemporâneas (Npiac), que visa a ressocialização de adolescentes que cumprem medidas socioeducativas em unidades de internação do estado do Rio de Janeiro.
O projeto, intitulado “Parcerias: a socioeducação vista por adolescentes em conflito com a lei e por agentes socioeducativos”, é coordenado por Hebe Signorini Gonçalves, professora do IP/UFRJ e coordenadora do Nipiac, e é desenvolvido em parceria com o Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), órgão da Secretaria Estadual de Educação.
“A gente começou a trabalhar com o Degase em 2009. E foi um longo período de estabilização, pois nossa entrada precisou ser duramente negociada. Na época, vivíamos um momento em que pouquíssimas pessoas de fora eram autorizadas a entrar no Degase, as unidades estavam praticamente fechadas. A negociação durou cerca de um ano até conseguirmos formalizar um Termo de Cooperação entre a UFRJ e o Degase”, conta Hebe.
O trabalho desenvolvido pelo grupo mostrou inúmeros avanços e mudanças com o decorrer dos anos. Segundo a professora, em determinado período no qual o projeto recebeu um investimento um pouco maior, as ações da equipe chegaram a estender seu alcance às alas femininas e aos próprios agentes socioeducativos.
“Desde o início, o que eu proponho é fazer grupos de encontros semanais com os adolescentes, oficinas de trabalho, dinâmicas. Eu e minha equipe, os estagiários, vamos para uma sala e conversamos abertamente com esses jovens. Geralmente, os encontros giram em torno de 15 jovens por grupo e cada grupo tem duração de aproximadamente 10 semanas, sendo 2 horas semanais”, explica Hebe.
“Conviver com a diferença foi um choque”
O recém-formado aluno de Psicologia Raphael Thomas foi um dos bolsistas que participaram do projeto e que pôde ver de perto o efeito de uma experiência como essa.
“Foi a primeira vez que eu senti de fato a extensão desse abismo. Não apenas uma distinção de classes ou uma distinção geográfica. Em alguns momentos, dentro dos grupos, tínhamos dificuldade até mesmo para entender o que aqueles adolescentes estavam falando. Pra mim, foi um choque”, revela.
Na ocasião, tornou-se visível e concreta para o bolsista a dimensão da distância entre as duas realidades. “Trata-se de outra língua, outro universo, outra relação com o mundo”, analisa Raphael.
Ele conta que saiu do projeto há mais de um ano e ainda recebe um retorno muito grande.
“É uma experiência na qual existe uma troca cultural tão forte que acaba transformando o modo de se relacionar com o mundo. Não meço palavras pra dizer que essa foi a experiência com a qual mais cresci”, frisa.
Em meio à convivência com as diferenças, a sua visão de mundo mudou e muitas coisas ganharam novos significados.
“Desde questões mais banais até as fundamentais, como o valor que a gente dá à própria vida. O abismo existe, e o máximo que conseguimos fazer é construir uma ponte. Mas tudo depende de como você constrói e sustenta essa ponte”, destaca.
Uma pessoa para além do ato infracional
A aluna Valeska Pinheiro, estudante de Psicologia, ainda faz parte do grupo e, assim como Raphael, mostra-se otimista e realizada com os resultados obtidos.
“Aprendi que todo mundo tem um pouco a nos acrescentar em alguma coisa, nunca podemos nos fechar. Aprendi a tentar ser cada dia mais humilde, não apenas em termos materiais, mas também sentimentais.”
Valeska diz que a equipe não entra nas unidades com a prepotência de que vai salvar alguém. “A ideia é abrir brechas e fazer com que os jovens nos enxerguem e nós possamos enxergá-los, reconhecendo as diferenças, mas também procurando pontos de encontro para estabelecer um diálogo. Estamos ali para entender e mostrar para aqueles adolescentes que existe um indivíduo para além de um ato infracional.”
Segundo Hebe, ações pequenas como essas podem sim fazer a diferença e abrem espaço e credibilidade para atitudes ainda maiores.
“Se o que a gente fez, que foi tão modesto, surtiu tanto efeito, imagina um projeto maior, mais complexo, com mais investimento. O nosso trabalho está aqui para mostrar que é possível”, assegura.
A professora reforça a importância da preocupação com a recuperação da população carcerária e faz uma reflexão a respeito da atual estrutura prisional. Ela diz que o muro que se ergue em torno dessas unidades não é apenas de pedra, mas também um muro simbólico.
“Quem está do lado de lá fica recluso, excluído, e quem está do lado de cá se encarrega de completar esse jogo. ‘Tranca e deixa que eu me esqueço disso’. É assim que a sociedade tem lidado com a questão da segurança. Eu gosto de pensar no trabalho da Universidade com o Degase como um exercício de retirar tijolinhos desse muro”, afirma a coordenadora do Npiac/UFRJ.
Superlotação atrapalha o trabalho
Segundo Hebe, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) indica que as unidades de internação não podem agir inteiramente por conta própria em todas as áreas.
“Elas têm que trabalhar com uma perspectiva de incompletude institucional. Esses adolescentes precisam ter contato com o mundo aqui fora e, já que eles não podem sair, nossa proposta é levá-lo até eles, estabelecer um tipo de relação que, na medida do possível, respeitadas as diferenças, seja de igual pra igual”, diz a professora.
De acordo com Hebe, 2016 foi um ano extremamente complicado e o trabalho desenvolvido pelo grupo teve suas ações afetadas.
“Foi um período extremamente difícil. Todas as unidades iniciaram um momento de superlotação. Uma estrutura construída para suportar cerca de 110 adolescentes se viu acomodando cerca de 400. As equipes da unidade ficaram extremamente incomodadas com isso e o nosso trabalho começou a patinar”, relata.
Mas a equipe do projeto espera retomar o ritmo das ações em 2017. Independente das dificuldades encontradas, Hebe, Raphael e Valeska contam que muitas das conversas e experiências tidas dentro e fora das unidades com os adolescentes os afetaram de maneira significativa e que a bagagem e o aprendizado levados do projeto são inestimáveis.
“A gente encontra com eles por aí e é muito curioso ver que nos reconhecem, nos respeitam, sentem carinho e gostam que a gente os reconheça. Isso tem uma relação muito estreita com a nossa proposta de trabalho e com o que queremos alcançar com ela. Esse reconhecimento e essa sensação de que é possível”, completa Hebe.