Categorias
Conexão Sociedade

Pesquisa: universidade pública elitista é mito

A gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais é um princípio constitucional previsto no artigo 206 da Constituição Federal. Com base nele, o Supremo Tribunal Federal (STF) editou a Súmula Vinculante 12, em 13 de agosto de 2008, que reconheceu a inconstitucionalidade da cobrança de taxa de matrícula em universidades públicas.

No entanto, sob a alegação de que a universidade pública é frequentada majoritariamente por estudantes ricos, setores adeptos da política do governo federal de corte de investimentos em educação (ver nota da UFRJ sobre o tema) já defendem abertamente a cobrança de mensalidades como alternativa para financiar as atividades acadêmicas das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes).

Ao lado da redução de verbas, outras medidas também poderão contribuir para o processo de precarização da qualidade da universidade pública e, como decorrência, reforçar a defesa da sua privatização. Entre elas, a recente nomeação de representantes do setor privado para o Conselho Nacional de Educação (CNE) e a extinção do programa Ciência Sem Fronteiras.

O jornal O Globo, por exemplo, publicou no dia 24 de julho o editorial “Crise força fim do injusto ensino superior gratuito”, em que afirma textualmente: “Alunos de renda mais alta conseguem ocupar a maior parte das vagas nos estabelecimentos públicos, enquanto aos pobres restam as faculdades pagas.”

Menos de um mês depois, contudo, a conclusão do jornal foi cabalmente desmentida pela pesquisa do perfil socioeconômico dos estudantes das universidades públicas federais, divulgada em 18 de agosto pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

Segundo o estudo, dois terços dos alunos dessas universidades – ou seja, 66,19% – são oriundos de famílias que vivem com renda per capita média de até 1,5 salário mínimo.

Como esse é o teto máximo de renda per capita familiar para o acesso a programas de assistência estudantil, a pesquisa indica, na verdade, a necessidade de reforçar as políticas que garantem a permanência na universidade de estudantes em situação de vulnerabilidade social e econômica.

Estudantes protestam em Brasília contra medidas do governo federal que precarizam a universidade pública.
Estudantes protestam em Brasília contra medidas do governo federal que precarizam a universidade pública. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Universidade inclusiva e multicultural

Ângela Paiva Cruz, presidenta da Andifes e reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), avalia que as universidades federais, antes estigmatizadas como “elitistas” e restritas aos grandes centros urbanos, assumiram-se na segunda década do século XXI como instituições inclusivas e povoadas por uma diversidade de sotaques, cores de pele, procedências territoriais, crenças e gêneros.

“O quadro discente das Ifes está mais próximo ou parecido com a cara deste país multirracial, multicultural, multifacetado socialmente. Assim como é notória a desigualdade da sociedade brasileira, são, também, notórios os sintomas de inclusão das mais diversas camadas sociais da população nestas instituições”, destaca.

Segundo Ângela, a Lei nº 12.711/2012 – conhecida como a Lei de Cotas –, o Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) e outras políticas ou programas governamentais remodelaram o perfil do alunado das Ifes no país e trouxeram uma nova forma de conviver e aprender com as diferenças.

“Dos povos indígenas aos que têm limitações físicas, daqueles que assumem novas formas de gêneros aos que habitam os mais distantes rincões, todos estão nos ensinando novos hábitos nas relações em grupos, sociais e pessoais. Isto tem tudo a ver com estratégias de inclusão praticadas nas instituições, como a utilização do Enem de 2009 em diante, a adesão das Ifes ao SiSU, e, também, a interiorização das universidades e institutos federais de ensino”, explica a presidenta da Andifes.

Ângela Maria Paiva Cruz, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).
Ângela Paiva Cruz, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Foto: Cícero Oliveira (Ascom / UFRN)

Ela ressalta que o perfil revelado pela pesquisa mostra a necessidade de fortalecer a universidade federal pública gratuita e de qualidade. “O estabelecimento de anuidade ou mensalidade para estudantes das Ifes, cujo perfil é muito semelhante ao da sociedade brasileira, não é pertinente”, sustenta.

Ângela Paiva defende ainda que o decreto que estabeleceu o Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) – um instrumento tido como juridicamente precário – seja transformado em lei federal.

“Cobrança beneficiará quem pode pagar”

Para Eduardo Serra, pró-reitor de Graduação da UFRJ, não é porque o país vive agora um momento de retração econômica que se deve optar preferencialmente pelo corte dos recursos destinados às áreas sociais. Ao contrário, diz que seria mais apropriado reduzir o pagamento de juros aos bancos e preservar os investimentos em setores como educação e saúde.

Em entrevista ao Conexão UFRJ, Serra afirma que a cobrança de mensalidades acabaria excluindo da universidade pública parcelas da população de baixa renda que são hoje atendidas em instituições de todo o país.

Ele ainda defende uma mudança no sistema tributário brasileiro capaz de ampliar a presença dos jovens na educação superior, restrita hoje a apenas 17% daqueles que têm entre 18 e 24 anos.

Veja abaixo a entrevista completa:

Thaynara Lima, estudante cotista do 5º período de Jornalismo da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), diz que o fim da gratuidade nas instituições federais a obrigaria a abandonar o curso.

“O perfil da Universidade mudou. Tem muita gente da periferia aqui dentro e muitos só estudam porque têm direito a bolsa”, frisa.

Embora avalie que há estudantes que podem pagar uma mensalidade, Thaynara sublinha que a ideia é, na prática, inviável. Ela acredita que a medida faria a universidade pública voltar ao tempo em que era uma instituição elitista.

Veja o depoimento da estudante ao Conexão UFRJ:

Boaventura: “Brasil entre ensino como missão ou negócio”

Coryntho Baldez

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos divide o seu tempo entre as atividades de acadêmico e ativista global de causas sociais.

Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade Yale e professor titular da Universidade de Coimbra, tem extensa obra publicada sobre pós-colonialismo, epistemologia, justiça, direitos humanos, democracia e universidade.

Em sua peregrinação mundial para prestar apoio às lutas dos povos da periferia do capitalismo pela igualdade social e pela cidadania política, pode ser encontrado discutindo concentração de riqueza com ativistas neoghandianos na Índia, direitos indígenas no altiplano boliviano ou privatização do ensino superior no Brasil.

Em sua última visita ao país, Boaventura esteve no Rio de Janeiro e deu entrevista exclusiva ao Conexão UFRJ sobre a universidade pública brasileira. Na ocasião, o Congresso Nacional ainda não havia decidido pelo afastamento da presidenta Dilma Rousseff do cargo.

Portanto, não há o registro nesta matéria da opinião do sociólogo sobre a mudança no governo e a possibilidade real de regressão de direitos sociais e de cortes profundos no setor educacional.

Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, professor titular da Universidade de Coimbra.
Sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, professor titular da Universidade de Coimbra. Foto: Enric Vives Rubio / O Público

Mas, quando falou ao Conexão UFRJ, Boaventura já advertia que a presença de estudantes oriundos das camadas populares na universidade exige mais investimentos e alertava para a tendência privatizante do ensino superior no Brasil.

A educação na Bolsa de Valores

O sociólogo começou a entrevista destacando que o Brasil é um país dual entre a educação como missão e a educação como negócio. “Houve um período, durante os anos de 1990, em que promoveu-se muito a ideia de educação como negócio. Portanto, temos hoje universidades privadas que estão cotadas na Bolsa de Valores. E qualquer instituição de ensino com ações na Bolsa não tem como referência o estudante nem sequer os professores, mas os seus acionistas ou aqueles que especulam sobre o chamado capital educativo”, criticou.

Os números confirmam a análise, uma vez que hoje, do total de matrículas no ensino superior, aproximadamente 71,4% estão vinculadas a instituições privadas, segundo o último Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo Inep.

Apesar dos problemas relacionados à qualidade do ensino, Boaventura considera importante o esforço dos últimos governos para aumentar o acesso à universidade daquela juventude que estava marginalizada por ser pobre, negra ou indígena. “Penso que essas políticas afirmativas e de cotas tiveram um papel importante. São sempre ações compensatórias que têm que durar décadas para poderem efetivamente surtir efeitos”, disse.

Falta investir em infraestrutura e modificar currículos

Ao comentar a situação de asfixia financeira da universidade pública no Brasil, Boaventura afirmou que, quando se ampliou o sistema público, não se levou em conta que é preciso também criar meios para que ele depois funcione.

“Criaram-se altas expectativas, com a abertura, em poucos anos, de 18 universidades públicas e de milhares de novas vagas. Isso significou uma ampliação enorme do sistema universitário, mas não houve investimento em infraestrutura das salas de aulas, dos laboratórios, dos salários dos professores, das cantinas, do transporte. E não houve modificação dos currículos”, frisou.

O sistema político, para o sociólogo, passou a incorporar a cultura neoliberal de não investir na educação porque, no fundo, a considera uma atividade que deve ser assumida pela iniciativa privada.

“O sistema educacional brasileiro, nos últimos anos, ficou no meio do caminho. Fez-se uma reforma para democratizá-lo, que a certa altura parou, e quando isso aconteceu criou-se uma expectativa que está a ser frustrada. Há greves de professores, funcionários, e penso que isso só pode ser resolvido investindo numa nova fase, que não seja tão quantitativa, mas sim qualitativa”, asseverou.

A mudança de rota que Boaventura defende para a educação brasileira está vinculada ao fenômeno do ingresso na universidade de uma nova classe média e de jovens ligados a movimentos sociais.

“Essas pessoas trazem a possibilidade de muitas iniciativas e inovações pedagógicas, metodológicas, científicas e epistemológicas que não chegam à universidade, mesmo quando são extremamente úteis em áreas como Direito e Medicina, por exemplo. Esses são os novos aliados que a universidade tem que buscar”, completou.