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Em que me ajuda ler literatura nestes tempos?

Em artigo, a servidora técnico-administrativa Cristiane Suzart fala da importância dos livros durante o isolamento

“Estou com muitas dificuldades de ler neste momento!” Essa é a frase que mais tenho ouvido das minhas amigas durante o período de quarentena. A minha sugestão é sempre a mesma: leia literatura! Se for necessário ler textos não literários agora, intercale as demais leituras com textos literários. Sim, em tempos sombrios, quando o medo da morte nos cerca por todos os lados, precisamos nos permitir viajar por outros mundos que vão ressignificar a vida. Conhecer outras dores, muito parecidas com as nossas, experimentadas por diferentes personagens, possibilita-nos perceber o quão universais são muitos dos nossos sentimentos.

Riobaldo nos alertou, em várias passagens de Grande sertão: veredas (1956), que “viver é perigoso”, não há mesmice, há sempre o inesperado. Fizemos vários planos para 2020, compramos agendas e registramos os compromissos. Alguns se matricularam em academias, outros iniciaram um curso novo, há quem abriu um novo negócio etc. No entanto, uma pandemia chegou e mudou toda a nossa rotina e, muito antes de conseguirmos digerir os fatos, foi preciso nos reinventarmos.

Já dizia o poeta Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/Muda-se o ser, muda-se a confiança;/Todo o mundo é composto de mudança,/Tomando sempre novas qualidades”.

Uma onda de incertezas e más notícias provocou em nós a angústia de não sabermos quais serão os passos seguintes. Da mesma forma que os cientistas estão lidando com um vírus novo, nossa geração está lidando com uma profunda mudança de vida que representará um marco no século XXI. É prudente nos mantermos informados sobre o cenário da expansão da doença, porém, em alguns momentos, precisamos de alguns caminhos de fuga que, é claro, não coloquem em risco a nossa saúde. O filósofo Nietzsche disse que “a arte existe para que a realidade não nos destrua”. Por essa razão, convido você para uma viagem ao universo da literatura.

Para muito além de tentar, freneticamente, distrair a cabeça, no contexto de pandemia, ler um bom livro nos forma e pode nos expandir em humanidade. Daniel Pennac, no seu livro Como um romance (1993), reflete sobre o papel da literatura e seu aspecto formativo: “a maior parte das leituras que nos formaram não foram feitas a favor, mas contra. Líamos e lemos, como quem se protege, como uma recusa, como uma oposição” (1993, p. 80).

Assim, me opondo à inércia que tentou me invadir, resolvi não fugir da dor, fui ao encontro dela, mas não fui sozinha. Encontrei alento em Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas, que transborda em humanidade na aparente simplicidade de seu discurso: “Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa” (2019, p. 18). Aprendi com Riobaldo lições valiosas: “O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (2019, p. 230). O efeito provocado em mim por aquela maneira tão singular de me impelir a ter coragem foi muito importante quando tristes notícias começaram a chegar.

Li que um querido professor partiu, depois mais outro, depois um poeta… Professores deveriam ser eternos: quanto mais velhos, mais têm a nos ensinar. E o que dizer dos poetas? Deveria ser proibido morrerem professores e poetas! – pensei. Foi então que ouvi a voz triste de uma amiga, buscando consolo, me dizer que seu vizinho havia morrido.

“Ele saiu do prédio em uma maca, pude ver da janela seus olhos buscando seu apartamento, acho que ele estava pedindo a Deus a chance de voltar para casa”, ela disse. Perguntei, então, se os dois eram amigos. Ela disse que não, só trocavam cumprimentos rotineiros. Nesse momento, a vida do professor, a vida do poeta e a vida do vizinho da minha amiga despertaram em mim emoções indizíveis. Lamentei profundamente por cada uma dessas vidas, cada uma delas importava e muito.

Assim lembrei de Macabéa, personagem do romance A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector. Quis voltar às páginas do livro que conta a história da datilógrafa alagoana que sofre um processo de invisibilidade na cidade grande (Rio de Janeiro): “Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam” (1998, p. 14).  Esse romance apresenta uma crítica voraz à desigualdade social e ao preconceito sofrido por Macabéa, que só consegue brilhar em sua morte, quando é atropelada por uma Mercedes-Benz, momento da narrativa em que o narrador Rodrigo S.M. nos conduz a uma intensa comoção:

“Rezem por ela e que todos interrompam o que estão fazendo para soprar-lhe vida, (…). Os que me lerem, assim, levem um soco no estômago para ver se é bom. A vida é um soco no estômago” (1998, p. 83).

Longe de distrair a minha cabeça da dor que eu estava sentindo, recorrer ao romance A hora da estrela significou encontrar ancoragem na angústia do narrador que também experimenta, no universo romanesco, emoções que o afetam. A expressão “soco no estômago” contemplava o que eu estava sentindo no momento. A cumplicidade estabelecida com Rodrigo S.M. fez da minha dor uma dor partilhada.

O texto literário nos desperta diferentes emoções que vão ao encontro do que há de mais humano em nós, porque a literatura pulsa vida. As emoções são de natureza e origens diversas e, como acontece na vida, em alguns momentos nos provocam desconforto. Na vida não cabem só coisas bonitas, cabe também o sofrimento. No entanto, deslocar nossas angústias para as páginas de um livro também traz certo alívio;já não estamos mais sozinhos.

Como um pêndulo que se desloca de um lado para o outro, seguíamos a nossa rotina, muitas vezes, de forma mecânica, de modo que a nossa constante falta de tempo nos isentava de olhar para dentro de nós, camuflávamos a falta que todos os excessos que consumíamos escondiam. A quarentena obrigou muita gente a visitar terrenos baldios da alma e esse movimento muitas vezes é dolorido e nos assombra. Todavia, quem está disposto a repensar a existência tem, neste momento, a oportunidade. Ir em busca de personagens que se propuseram a uma autorreflexão ajuda bastante.

O escritor português Valter Hugo Mãe escreveu um romance muito bonito chamado O filho de mil homens (2012), que traz nas histórias sofridas de seus personagens uma incessante busca pela felicidade, rendendo a eles profundas e poéticas reflexões sobre a vida. O pescador Crisóstomo, meu personagem preferido, em um momento de êxtase, avalia o papel das adversidades na construção do que ele considera felicidade: “Deve-se nutrir carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade, repetiu muito seguro. Apenas isso. Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é. Se assim for, não é necessário voltar atrás. A aprendizagem estará feita e o caminho livre para que a dor não se repita. Estava a crescer. O pescador crescia para ser um homem tremendo” (2016, p.187).

Cristiane Suzart é Técnica em Assuntos Educacionais do Colégio de Aplicação da UFRJ

Daniel Pennac afirma que “Uma leitura bem levada nos salva de tudo, inclusive de nós mesmos” (1993, p.81). Que a rotina exaustiva da quarentena não nos impeça de entregar-nos ao prazer de uma boa leitura. Sei que, para muitos, além do aspecto emocional, esse período tem significado um acúmulo de muitas tarefas: trabalhar de casa; gastar muito tempo higienizando tudo o que vem da rua;manter a casa limpa; para quem estuda, administrar suas aulas on-line; para quem tem filhos, administrar as aulas on-line dos filhos etc… Será que vai sobrar tempo para ler? Segundo Pennac, “se pensarmos bem, ninguém jamais tem tempo para ler. Nem pequenos, nem adolescentes, nem grandes. A vida é um entrave permanente à leitura” (1993, p.118). Mas sempre há um jeito de driblar os afazeres, de subverter a rotina para permitir-se um encontro deleitoso com um livro, pois “O tempo para ler é sempre um tempo roubado. (Tanto como o tempo para escrever, aliás, ou o tempo para amar.)” (1993, p.118). E vale muito a pena “roubar” esse tempo para ler e, também, para amar, já que “O tempo para ler, como o tempo para amar, dilata o tempo para viver” (1993, p.119).

Estamos vivendo tempos difíceis; entretanto, como todo momento de crise, temos a chance de aprender mais sobre nós e nos perdermos nas páginas de um bom livro. E isso pode significar se encontrar, se achar em si. Por entre as paredes de nossas casas e prédios, podemos vislumbrar possíveis paisagens dentro e fora de nós através das páginas de um livro. Uma conexão profunda com um texto literário pode apontar caminhos para os mundos que desejamos (re)construir neste tempo de isolamento. Joana, personagem do romance Perto do coração selvagem (1943), de Clarice Lispector, vive uma trajetória de autoconhecimento que nos inspira a avaliar também a nossa trajetória.

Aprendi com a personagem Joana que, mesmo quando a vida parece nos conduzir a um labirinto de incertezas, temos a chance de aprender mais sobre nós e sobre a nossa capacidade de superação. Concluo esta reflexão com o último período desse romance de Clarice: “Ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim, até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo” (1998, p.202).

Referências:

CAMÕES, Luís Vaz de. Disponível em: https://www.portaldaliteratura.com/poemas.php?id=650. Acesso em: 26 de maio de 2020.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

____________. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. O nascimento da tragédia. Trad. de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

PENNAC, Daniel. Como um romance. Trad. de Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

* Cristiane Suzart é mestra em Literatura Portuguesa e graduada em Letras Português-Literaturas pela UFRJ, atua como Técnica em Assuntos Educacionais na Sala de Leitura do Setor de Educação Infantil do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRJ e é professora de português e literatura do Ensino Médio pelo Estado do Rio de Janeiro. Desde 2016, participa de grupos de pesquisa na área de educação.