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Agrotóxicos: aumentar ou inibir o uso ?

Em 2019, duas propostas que pretendem legislar sobre o uso de agrotóxicos no país dividirão o debate no plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília. Uma, por meio do Projeto de Lei n° 6.299/2002, de autoria do atual ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento Blairo Maggi, propõe mudanças no sistema de registros desses produtos químicos. Outra, representada pelo Projeto de Lei n° 6.670/2016, de iniciativa da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e autoria da Comissão de Legislação Participativa, dispõe sobre a criação de uma política nacional de redução gradativa de seu uso. Aprovados em Comissão Especial, respectivamente, nos dias 25/6 e 4/12, os dois textos materializam visões antagônicas acerca do cultivo de alimentos e suas finalidades.

O PL 6.299, que altera a Lei nº 7.802, de 1989, conhecida como Lei dos Agrotóxicos , propõe, por exemplo, mudar a estrutura organizada atualmente para avaliar se um produto pode ser importado ou produzido e comercializado no país. Essa avaliação é feita em três instâncias: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Ministério da Saúde (MS) – por meio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – e Ministério do Meio Ambiente (MMA) – pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Com a reformulação no artigo 3° da legislação vigente, o PL propõe a criação da Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito), que reúne os demais ministérios como consultores, mas cuja vinculação é atribuída ao Mapa. “A ideia é que a ciência paute a matéria e afaste a subjetividade”, defende o relatório favorável ao PL 6.299, assinado pelo deputado Luiz Nishimori (PR-PR).

Palavra final sobre agrotóxico deixa de ser da Anvisa

Para pesquisadores consultados por nossa reportagem, a mudança não seria positiva para a população, uma vez que o contraponto oferecido pelo MS e MMA ao Mapa seria reduzido ou eliminado do processo de avaliação de novos ou reavaliação de antigos produtos. “O Mapa analisa a eficiência do agrotóxico no local da produção, o Ibama verifica seus efeitos junto ao meio ambiente, já a Anvisa avalia as consequências para a saúde humana. A palavra final, atualmente, é da Anvisa. Com a mudança na legislação, o registro de agrotóxico fica a cargo do Mapa, e o MS e o MMA, apesar de terem cadeira prevista na CTNFito, perdem o poder de dizer não”, comenta Paula Brito, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc) da UFRJ. De acordo com o PL 6.299, a Anvisa também perderia a função de realizar reavaliações toxicológicas e divulgar dados sobre resíduos em alimentos.

Foto colorida de Paula Brito, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.
Paula Brito, professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc) da UFRJ. Foto: Diogo Vasconcellos (Coordcom / UFRJ)

Nesse novo sistema de registros, o PL 6.299 prevê ainda: a mudança da denominação – de agrotóxico para pesticida; a redução do prazo para a avaliação de produtos; autorização temporária para casos que resultem em impasse na CTNFito; autorização automática de produtos que esperem mais de dois anos por reconhecimento; a possibilidade de se emitir receituários preventivos, para o risco, ou seja, para combater pragas previstas, mas que ainda não atacaram uma plantação; o fim da autonomia dos estados para legislar sobre agrotóxicos em seus territórios.

Agrotóxicos poderão ser pulverizados

“Também destacamos a questão da mistura de agrotóxicos. Embora existam vários produtos comerciais que são compostos por misturas, o que é um problema, é proibida a mistura de agrotóxicos em campo para a pulverização. E essa legislação aprova isso. Então, dois, três, quatro produtos comerciais poderão ser misturados e entregues à pulverização”, destaca Murilo Mendonça, coordenador do Grupo de Trabalho Agrotóxico e Transgênicos da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).

“Mas as avaliações são feitas para um princípio ativo, e não para uma mistura. Com o PL 6.299 aprovado, não temos ideia do que pode acontecer com essas pulverizações, porque não haverá avaliação para esses princípios”, prossegue Mendonça, que é professor do curso de Geografia da Universidade Estadual de Goiás (UEG), onde coordena o Núcleo de Agroecologia e Educação do Campo (Gwatá).

Nas palavras do deputado Nishimori, trata-se de medidas para garantir a eficiência e a alta capacidade produtiva do agronegócio, uma vez que a Lei de 1989, apesar de sua relevância para seu tempo, estaria “obsoleta”. “A atual legislação não considera as características e dificuldades de produzir na região tropical (…). A avaliação dos pesticidas e afins está desatualizada em relação ao cenário internacional (…). O sistema de registro de pesticidas é extremamente burocrático, em que se perpetuou longas filas nos órgãos federais de análise”, escreve o relator, que é integrante da Frente Agropecuária Parlamentar e, conforme investigou o observatório De Olho nos Ruralistas , já foi proprietário de duas empresas distribuidoras de insumos agrícolas, hoje em nome de sua família.

Nos EUA e na Europa regulação é mais severa

No que diz respeito à obsolescência da Lei dos Agrotóxicos, Claudia Job Schmitt, professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), discorda. “Essa nossa legislação é importante, é uma peça consistente, foi aprovada em 1989, um ano depois da Constituinte. Foi o resultado de uma mobilização social intensa, primeiro, no Rio Grande do Sul e, no curso da década de 1980, em todo o território nacional, envolvendo entidades como a Associação de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) e a Associação Nacional dos Engenheiros Agrônomos”, continua.

Quanto ao descompasso do país em relação a outras partes do mundo, o que se diz é que, na verdade, há regulações bem mais severas do que as nossas. “Se formos verificar no artigo n° 225 da Constituição, iremos ver que há um detalhamento apontando o papel do Estado na regulação de substâncias químicas, tóxicas etc. E mais: temos uma série de tratados internacionais que defendem a regulação tanto em relação aos transgênicos quanto em relação aos poluentes. Não é uma moda brasileira. Nos Estados Unidos e na Europa as exigências para o uso de agrotóxicos são muito maiores. O que causa espanto é a estranheza em relação à regulação, como o PL 6.299 está tentando provocar”, questiona Schmitt.

Foto colorida de algumas frutas e legumes com adesivos e plaquinhas com o aviso de conterem veneno para ilustrar a informação de que o Brasil consome 20% de todo o agrotóxico comercializado no mundo.
Brasil consome 20% de todo o agrotóxico comercializado no mundo. Foto: Fernando Frazão (Agência Brasil)

De acordo com o atlas Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia , produzido pela pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) Larissa Mies Bombardi, o Brasil consome cerca de 20% de todo o agrotóxico comercializado no mundo e tem 504 ingredientes ativos com registro autorizado, sendo 30% deles proibidos na União Europeia. Conforme constatou o estudo comparativo, entre o Brasil e a Europa há “assimetrias” no que diz respeito tanto à quantidade de produtos liberados para consumo como à tolerância em relação ao limite de resíduos nos alimentos e na água. O Glifosato, por exemplo, mais vendido no Brasil e proibido em alguns países do Norte, tem um Limite Máximo de Resíduo (LMR) dez vezes maior em nosso café e 5 mil vezes maior em nossa água. O herbicida Atrazina, proibido por lá e sétimo no ranking do mercado brasileiro, pode conter 5 vezes mais resíduos na cana e no milho consumidos por aqui e 20 vezes mais resíduos na água.

Brasil, o campeão no consumo de agrotóxicos

Por mais que o relator do PL 6.299 reclame de morosidade na liberação de novos produtos, os números mostram outra realidade. Conforme o Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag), desde 2008, o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo e, entre 2000 e 2012, as vendas subiram 288%. Isso faz com que, com base em parecer técnico da Anvisa, seja possível constatar contaminação em mais de 60% dos alimentos que circulam pela mesa dos brasileiros. Deste modo, Brito rebate o discurso da necessidade de flexibilizar a legislação existente para garantir a eficiência da produção agrícola. “Muito se fala sobre a necessidade do uso de agrotóxicos para garantir a alimentação de toda a população mundial. Porém, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), desperdiçamos um terço de tudo o que é produzido. No Brasil, 28% dos alimentos se perdem ainda no processo de produção e mais 28% vão para o lixo após chegarem à casa das pessoas. No mundo, 1,3 bilhão de toneladas de comida são descartadas por ano. E quase 800 milhões de pessoas passam fome. Ou seja, não há relação da fome no mundo com a produção, mas sim com a distribuição e o acesso”, polemiza.

Foto colorida de agrotóxicos ilegais apreendidos pelo Ibama, no Rio Grande do Sul, em março deste ano.
Agrotóxicos ilegais apreendidos pelo Ibama no Rio Grande do Sul, em março deste ano. Foto: Ibama

Contraponto ao PL 6.299 é o PL 6.670, que cria a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pnara) . Sua proposta é prever ações que contribuam para “a redução progressiva do uso de agrotóxicos na produção agrícola, pecuária, extrativista e nas práticas de manejo dos recursos naturais”, conforme escreve o relator Nilto Tato (PT-SP), “com ampliação da oferta de insumos de origens biológicas e naturais”. Sua centralidade está na promoção da saúde e de práticas menos impactantes ao meio ambiente. “Entre as mudanças que a Pnara traz, estão: registro com maior seriedade, mais rigor, maior responsabilidade; controle em relação ao monitoramento e responsabilização de toda a cadeia produtiva, estabelecendo medidas econômicas que possam, de alguma forma, coibir o uso de agrotóxicos e fortalecer o uso de outras alternativas; formação em relação aos impactos dos agrotóxicos, participação e controle social etc.”, lista Mendonça.

Nilto Tato apresenta tanto o teor do projeto quanto o próprio parecer como “uma síntese das percepções convergentes sobre o tema (…) por parte de um vasto número de entidades da sociedade civil e de segmentos do setor público”. O contexto da Pnara é marcado pela implementação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), em 2012, no governo de Dilma Rousseff, resultado de negociações da sociedade civil com o poder público, e pela formulação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), recusado pelo Mapa e, por isso, engavetado em 2014. Participando do processo desde o início, Rogério Dias, vice-presidente da ABA Centro-Oeste, relata que o PL 6.670 foi a saída encontrada para responder aos avanços da flexibilização.

“Um dos grandes objetivos que tínhamos com a elaboração da Pnara era fazer um confronto com o PL 6.299. Durante todo o processo da Comissão Especial, sua presidente, deputada Tereza Cristina (DEM-MS), futura ministra da Agricultura, se recusava a ouvir, nas audiências públicas, uma série de setores e pessoas que eram indicados por deputados que faziam oposição ao projeto da maneira como ele estava colocado”, revela.

Para o ativista, o relatório de Tato torna público um histórico de negligência em relação aos argumentos contrários ao PL 6.299, formulados por ambientalistas, cientistas, técnicos dos órgãos públicos e profissionais de saúde. “É uma forma também de que, quando os dois projetos forem para o plenário, sejam lidos dois textos bastante diferentes, com posições muito contraditórias. Temos a chance de que essa discussão e essa reflexão sejam feitas em duas versões, e não apenas em uma”, acrescenta.

Ciente das dificuldades da “queda de braços” que, apesar de iniciada, se acirrará no próximo ano, Dias demonstra confiança, sobretudo, em razão da mobilização social até o momento configurada. Na avaliação do representante da ABA Centro-Oeste, ponto positivo é a articulação de setores da sociedade que, historicamente, atuavam em direções distintas. “Movimentos ambientalistas, da gastronomia, da nutrição, da agroecologia, da produção orgânica, das lutas camponesas etc., que antes tinham suas próprias agendas, que não tinham um histórico de fazer trabalhos juntos, se reuniram. Será uma experiência interessante ver como essa articulação, que deu certo, atuará”, vislumbra.

Na leitura de Schmitt, o que esse embate configura é, de um lado, a tentativa, por parte de determinados setores da sociedade, de desmantelar políticas outrora iniciadas, e, de outro, a luta por direitos. “Tentam equilibrar a situação pilares como: o conjunto de políticas para a agricultura familiar, em que se propõe ecologizar a agricultura, e a manutenção das terras não incorporadas pela dinâmica do mercado, que permitem a conservação, integral ou de uso sustentável”, explica. O debate sobre os agrotóxicos é pivô de uma disputa maior que envolve as novas dinâmicas da agricultura, vinculada ao mercado financeiro global e cujo avanço depende do enfraquecimento das populações locais, seja em termos territoriais, políticos e econômicos ou de saúde.