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Depois de 30 anos, Constituição Cidadã ainda é a mesma?

Ao nascer, em 5 de outubro de 1988, ela foi considerada por muitos como a mais avançada da história do Brasil. Após 30 anos de vigência, a Constituição – que consagrou novos direitos e garantias individuais – já recebeu um total de 105 emendas. Foi desfigurada? Ou ainda conserva a essência que a fez ficar conhecida como Constituição Cidadã?

Entre especialistas, há uma unanimidade: a Carta Magna de 1988 refletiu os acirrados conflitos presentes na sociedade brasileira daquela época. Mas a tensão de origem entre polos sociais distintos, na verdade, nunca cessou ao longo das três últimas décadas.

Carta de 1988 refletiu sociedade plural

Carolina Cyrillo, professora de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ, considera que a Constituição de 1988 contemplou muitas das demandas dos setores mais vulneráveis da sociedade.

Os constituintes, segundo ela, ouviram as reivindicações dos movimentos sociais, sindicais, das mulheres, dos índios e de outros setores representativos da sociedade. “A Constituição foi muito importante para a mudança do paradigma autoritário anterior para uma democracia”, afirma Carolina, que é chefe do Departamento de Direito do Estado da FND.

Foto colorida de Carolina Cyrillo, professora de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
Carolina Cyrillo, professora de Direito Constitucional da Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ. Foto: Canal Debates Públicos

Contudo, a professora avalia que a Constituição tem um vício congênito: o de não ter sido feita a partir de uma constituinte exclusiva, com representantes eleitos apenas para a tarefa de elaborar a lei maior. Em 1988, deputados federais e senadores acumulavam a função de congressistas com a incumbência de elaborar a carta constitucional.

“Isso fez com que os vícios do período anterior estivessem presentes na Constituição, especialmente em relação à organização dos poderes e das instituições da República, com os quais os deputados e senadores não estavam descompromissados”, critica.

Segundo a docente, mesmo que algumas emendas tenham até ampliado a rede de proteção social, como aconteceu em relação ao transporte e à alimentação, esses novos direitos constitucionais também acabaram sofrendo de um vício de efetividade. “Não adianta criá-los se não existem condições institucionais e nem políticas públicas capazes de implementá-los”, salienta.

Princípio constitucional de solidariedade em risco

De outro lado, a Constituição também recebeu emendas que subtraíram direitos políticos e sociais promulgados pela Constituição de 1988 ou inviabilizaram a possibilidade de efetivá-los ou expandi-los. A universalização do acesso à educação e à saúde, por exemplo, foi praticamente interditada com a aprovação em 2016 da Emenda Constitucional (EC) 95, que congela investimentos públicos nas duas áreas por 20 anos.

A mudança foi alvo de críticas de Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão, em evento sobre os 30 anos da Constituição, organizado pelo Fórum Rio, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs) da UFRJ, em 19/10, com a presença de dirigentes de universidades, institutos, entidades estudantis, escolas e instituições científicas.

A Constituição que a procuradora disse defender é aquela sem a EC 95 e que respeita o princípio da solidariedade estabelecido no artigo 3º: “Esse princípio prevê o comprometimento de todos e todas com uma sociedade livre, justa e igual, que supere as discriminações de todos os tipos”.

Foto colorida de Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão.
Deborah Duprat, procuradora federal dos Direitos do Cidadão. Foto: Ministério Público Federal

Antes de 1988, de acordo com Duprat, as Constituições no Brasil refletiam privilégios sedimentados ao longo da história do país, marcada por episódios de extrema violência, como o massacre de indígenas na conquista do território, a exploração predatória dos recursos naturais e a escravidão. Ela disse que os segmentos “considerados diferentes do padrão do homem branco e proprietário”, como negros, mulheres e trabalhadores, ficaram à margem do sistema social e legal.

Para a procuradora federal, a Constituição de 1988 foi a primeira a contemplar as demandas de diferentes sujeitos sociais. “Ela não foi produto de uma mente iluminada, mas de um processo histórico de lutas e espalhou direitos para todos os segmentos excluídos da população”, destacou.

Segundo Duprat, muitas das alterações promovidas na Carta Magna, como a EC 95 e a reforma trabalhista, que violou o preceito da proteção social do trabalho, contrariam o princípio da solidariedade e ferem o pacto constitucional de 1988.

Na abertura do evento, o reitor da UFRJ, Roberto Leher, lembrou que a atual Constituição foi promulgada em um contexto de superação da ditadura militar e que muitas das suas bandeiras precisam ser preservadas. Particularmente em relação à educação pública superior, citou como conquistas a liberdade de cátedra e a autonomia universitária.

Foto colorida do debate sobre os 30 anos da COnstituição Federal de 1988, realizado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
Debate “Direitos Constitucionais, 30 anos depois: para onde vamos”, realizado no Ifcs/UFRJ. Foto: Raphael Pizzino.

“Na Constituinte, estabelecemos uma relação entre liberdade e igualdade social. Vivemos tempos perigosos e precisamos nos organizar para o debate público e a defesa da civilização contra a barbárie”, salientou.

“Há uma campanha para criminalizar cientistas”

Em seguida, Luís Passoni, reitor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), ressaltou que a Constituição não nasceu como um pacto social, mas como uma disputa de forças sociais distintas.

Ele frisou que a Carta ampliou direitos de setores marginalizados como nenhuma outra, mas também evitou a concretização da reforma agrária, antiga bandeira dos sem-terra. Passoni disse, ainda, que o momento é de agressão intensa às garantias constitucionais e defendeu uma frente em defesa dos direitos inscritos na Carta Magna.

Ildeu Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), lembrou a contribuição da entidade na formulação do capítulo constitucional da Ciência, Tecnologia e Inovação. Segundo ele, a Constituição é moderna e incorporou direitos de cidadania, mas vem sendo desconstruída. “É essencial neste momento discutir direitos, celebrar a Carta de 1988 e continuar participando da elaboração de políticas públicas”, afirmou.

Já a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade, advertiu que está em curso uma campanha de deslegitimação do conhecimento científico. Ela ressaltou que alguns setores buscam criminalizar intelectuais, cientistas e servidores públicos, e não apenas sindicatos e movimentos sociais. “Se queremos nos organizar, precisamos defender o pensamento crítico”, completou.

Também compuseram a mesa do evento Jefferson Manhães, reitor do Instituto Federal Fluminense (IFF); Oscar Halac, reitor do Colégio Pedro II; e Maria Clara Delmonte, diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) Mário Prata.