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Por uma pesquisa antropofágica

A pesquisa na UFRJ deve escapar das prisões epistemológicas da chamada globalização ou internacionalização das ciências europeias, na opinião de Ivan da Costa Marques, professor do Programa de Pós-Graduação de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia (HCTE-UFRJ).

O movimento iluminista europeu, diz, ousou saber para além do conhecimento revelado, religioso, monopolizado pela Igreja, para colocar em cena a ciência moderna.

Em entrevista ao Conexão UFRJ, ele sustenta que a pesquisa brasileira tem muito a aprender com a ideia antropofágica de devorar o estrangeiro e apropriar-se de suas qualidades.

“Deve-se ousar saber para além do conhecimento científico europeu, sem jogá-lo no lixo indiscriminadamente, para colocar em cena a imensa riqueza dos conhecimentos coletivos locais”, frisa Costa, professor titular aposentado do Instituto de Matemática (IM) e que, recentemente, ocupou o cargo de pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ.

“O Uber é bom ou ruim para a sociedade?”

Ivan da Costa destaca que, apesar de a ciência moderna ocidental gostar de se difundir como universal e neutra, todo conhecimento científico carrega as condições de sua criação e dos enquadramentos feitos ao longo de sua história.

Foto de Ivan da Costa, professor titular aposentado do Instituto de Matemática da UFRJ.
Ivan da Costa: “Continuamos sem uma internet tão boa e um banheiro tão limpo para produzir pesquisa”. Foto: Necso.

O pesquisador salienta que um conhecimento científico é sempre incompleto. Suas avaliações e seus limites dependem de como em cada caso ele se configurará ao alojar-se em um mundo ou em um modo de existência no qual seus limites aparecerão.

Em sua visão, a dificuldade para produzir pesquisas de interesse da sociedade começa pelo próprio conceito de sociedade, que abriga diferenças e é multifacetada. Para dar um exemplo, indaga: o Uber é bom ou ruim para a sociedade?

Produzindo para revistas estrangeiras

Há outras dificuldades que se relacionam aos atuais critérios de avaliação da pesquisa brasileira. Uma delas, aponta Costa, é que os pesquisadores não são avaliados pela quantidade ou qualidade de sua produção de resultados de “interesse da sociedade”, mas pela quantidade e qualidade da produção de resultados de interesse para as revistas estrangeiras, especialmente as de língua inglesa.

Segundo ele, há uma crença ingênua ou oportunista em uma globalização uniforme que incentiva os pesquisadores brasileiros a, como indivíduos, julgarem-se parte das comunidades científicas das metrópoles que nos servem de modelo.

“Coletivamente, as diferenças são muitas e teimam em aparecer. Continuamos sem uma Internet tão boa, sem um banheiro tão limpo, sem produzir um conhecimento tão próprio, sem uma produção internacional tão respeitada e sem um reconhecimento nacional tão seguro”, critica.

Ivan da Costa acredita que os grupos de pesquisas das universidades brasileiras, públicas ou privadas, seriam mais bem sucedidos se definissem seus problemas a partir de modos de existência dos brasileiros, “em vez de tomarem emprestados problemas que, além de pouco relacionados com os problemas de quem nos paga, estamos pouco aparelhados para resolver”.

Leia aqui a entrevista completa

Conexão UFRJ – A atitude dos brasileiros em relação à ciência e tecnologia é muito positiva e otimista, segundo a pesquisa “Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil”, de 2015, realizada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e pelo então Ministério da Ciência e Tecnologia. A expectativa de 73% das pessoas entrevistadas é de que a ciência seja um fator de transformação para melhorar a vida das pessoas. O senhor acha que no Brasil esse papel da pesquisa científica vem sendo cumprido?

Ivan da Costa Marques – Não me surpreende se a maioria das pessoas entrevistadas considere que as ciências possam melhorar suas vidas, embora esses tipos de enquete muitas vezes direcionem as respostas. Uma observação mais consequente, creio, é que, para os brasileiros em geral, as ciências e as tecnologias, dois termos que se fundiram nas tecnociências das últimas décadas, vêm sempre de fora.

No Brasil, o termo ‘ciência e tecnologia’ é mágica importada. Entre nós, uma questão recorrente é: quando as novidades dos telefones, dos computadores, dos automóveis, dos remédios, dos materiais, dos métodos gerenciais etc. vão chegar ao Brasil? Assim, este papel da pesquisa como suposto fator de melhoria da vida ou dos modos de existência vai se relacionar com a possibilidade e capacidade de replicação local dos modos de existência dos lugares de onde nos chegam esses fatos e artefatos científico-tecnológicos. E, é claro, para quem chegam.

Conexão UFRJ – Cerca de 80% também consideram, pela mesma pesquisa, que é necessário que os cientistas exponham publicamente os riscos decorrentes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos. Como o senhor avalia essa preocupação dos brasileiros?

Ivan da Costa Marques – Se de fato existente e levada a sério, esta preocupação dos brasileiros é crucial porque ela nos remete diretamente às limitações da autoridade dos conhecimentos científicos.

Todo conhecimento científico tem sua validade e legitimidade estabelecidas a partir de inscrições, isto é, de elementos heterogêneos que os cientistas justapõem e combinam para criar e estabilizar suas teorias e seus instrumentos. Mas as inscrições são sempre e necessariamente obtidas em um enquadramento, uma parte reduzida, e escolhida, do mundo ou da vida.

Apesar de a ciência moderna ocidental gostar de se difundir como universal e neutra, todo conhecimento científico é situado e carrega as condições de sua criação e construção, dos enquadramentos feitos ao longo de sua história. Um conhecimento científico é sempre incompleto, suas avaliações e seus limites dependem de como em cada caso ele se configurará ao alojar-se em um mundo, em uma vida, em um modo de existência no qual seus limites aparecerão.

A maior disposição dos cientistas de expor publicamente os riscos decorrentes de seus conhecimentos levaria à maior disposição de aceitar os limites de sua autoridade, os limites das verdades científicas.

Ultimamente a vinculação da validade ou autoridade dos conhecimentos científicos aos enquadramentos em que são obtidos tem ganhado um público mais amplo: afinal, comer ovos fritos entope ou não entope nossas veias? Imaginem que dúvidas deste tipo são válidas também para os receituários dos economistas, dos químicos, dos físicos, dos psicólogos, de todos os cientistas, inclusive dos cientistas sociais.

Conexão UFRJ – Há, portanto, limites para a atuação do cientista?

Ivan da Costa Marques – Sim, apresso-me a dizer que não estou me referindo aos casos em que os cientistas estejam errados, nem estou negando a utilidade situada dos conhecimentos científico-tecnológicos, mas chamando atenção para os limites de sua autoridade, para que vinculemos as escolhas dos problemas e das soluções científicas a modos de existência.

‘Comer ovos fritos entope veias’ e ‘comer ovos fritos não entope veias’ podem permanecer ambas como verdades científicas em seus respectivos enquadramentos, pois a aparente contradição vem de uma indução generalizante (entope nossas veias) que, esta sim, ao apagar o enquadramento, está a serviço da criação de hierarquias de conhecimento que são indissociavelmente hierarquias políticas. Pessoas estão fora do enquadramento porque em seus corpos o colesterol não se deposita nas veias. Outras pessoas transbordam o enquadramento ao ingerir sistematicamente doses de sinvastatina.

Conexão UFRJ – E quais as principais dificuldades que o setor de pesquisa das universidades públicas encontra para se desenvolver e produzir resultados de interesse da sociedade?

Ivan da Costa Marques – Ótima pergunta, porque vejo aí pelo menos duas questões relevantes. A primeira se refere à expressão “interesse da sociedade”. A sociedade, se é que se pode usar este termo, não é somente plural, mas é propriamente múltipla.

Sabemos que os conhecimentos científicos não são neutros, de modo que o esperável é que, dados o espaço, o tempo e os seres, os conhecimentos científicos beneficiem alguns e dificultem a existência de outros.

O Uber é bom ou ruim para a sociedade? Não se pode estabelecer um quadro em que esta pergunta ganhe contorno mais nítido e possa ter uma resposta sem trazer as especificidades de espaço, tempo e seres.

Outra questão seria a da pergunta trazer à cena as fronteiras entre universidades ou organizações públicas e privadas na tentativa de identificar as principais dificuldades para produzir, vamos lá, resultados de ‘interesse da sociedade’.

Conexão UFRJ – E quais são as principais dificuldades?

Ivan da Costa Marques – Eu creio que uma dificuldade importante, certamente não a única, é que os pesquisadores e professores não são avaliados pela quantidade ou qualidade de sua produção de resultados de “interesse da sociedade”, e esta razão se aplica igualmente a instituições públicas ou privadas.

Com desculpas pela redução, bastante grosseira, os pesquisadores brasileiros são avaliados pela quantidade e qualidade da produção de resultados de interesse suficiente para as revistas estrangeiras, e os que estão em inglês valem mais.

A crença ingênua ou oportunista em uma globalização que levaria a uma uniformidade equaliza os interesses de sociedades muito diversas, mais propriamente, de coletivos muito heterogêneos, acentuando na nossa academia uma parte do que já foi chamado de fuga interior de cérebros.

Essa crença incentiva os pesquisadores brasileiros a, como indivíduos, julgarem-se parte integrada, em condições de paridade, às comunidades científicas das metrópoles que nos servem de modelo. Mas, coletivamente, as diferenças são muitas e teimam em aparecer.

Continuamos sem uma Internet tão boa, sem um banheiro tão limpo, sem produzir um conhecimento tão próprio, sem uma produção internacional tão respeitada, sem um reconhecimento nacional tão seguro etc.

Além disso, por maior que seja o alívio pessoal que aquela crença possa lhes trazer individualmente, em muitos casos ela não livra os pesquisadores de preconceitos da parte de seus colegas metropolitanos.

Creio que os grupos de pesquisas de nossas universidades, públicas ou privadas, seriam mais bem sucedidos, nacional e internacionalmente, se definissem seus problemas a partir de modos de existência dos brasileiros, em vez de tomarem emprestados problemas que, além de pouco relacionados com aqueles de quem nos paga, estamos pouco aparelhados para resolver.

Conexão UFRJ – Embora exista um quadro de dificuldade orçamentária enfrentada pela UFRJ, qual a sua expectativa em relação ao setor de pós-graduação e pesquisa da Universidade para os próximos anos?

Ivan da Costa Marques – É arriscado falar do futuro. É ocioso repetir o clichê de que “crises trazem oportunidades”, mas talvez estejamos diante da oportunidade de colocar em cena o que venho chamando de um “programa forte de pesquisa na UFRJ”.

Embora, ao dar os primeiros passos nesta direção, eu já tenha aprendido que este talvez não seja um bom nome para o projeto. Vejo pelo menos três condições para que um projeto deste tipo possa ser bem sucedido.

Primeiro, que a adesão a ele, por parte dos programas específicos de pós-graduação, seja voluntária e não obrigatória. Depois, que ele seja configurado com e pelos próprios programas, em um processo em que o papel da Pró-Reitoria seja constituir-se como um centro não autoritário.

E, por último, que os problemas brasileiros, regionais e locais, inclusive aqueles que sejam identificados na extensão, no ensino e na administração da própria UFRJ, sejam fontes de problemas para a pesquisa. É um caminho longo, mas vou ficar muito satisfeito se ele for escolhido mais consistentemente nos próximos anos.

Conexão UFRJ – E como iniciar essa mudança?

Ivan da Costa Marques – A configuração e adoção de um programa forte não pode ser um ato voluntarista, mas posso sugerir uma entrada neste caminho. Primeiro, observar que só se pode mudar a partir do ponto em que se está.

Temos no Brasil um sistema de pós-graduação talvez singular na América Latina, construído com esforços que, se quisermos marcar um início, remontam à criação do CNPq em 1951.

Podemos dizer que a pós-graduação e a pesquisa no Brasil lograram se institucionalizar, o que não é pouco em um país que talvez não saiba reconhecer suas riquezas porque não sabe medir-se e porque a má distribuição e falta de reconhecimento delas, por exemplo, o conhecimento popular como uma riqueza, acarreta carências escandalosas. Neste momento, no entanto, a pós-graduação e a pesquisa no Brasil estão sendo questionadas, confrontadas e desafiadas a apresentar melhores explicações do que as que retornam para a nação em troca dos recursos que recebem.

Conexão UFRJ – E isso é bom?

Ivan da Costa Marques – Começamos a deixar para trás, assim espero, a mentalidade senhorial de que a manutenção de uma casta que domina os códigos da linguagem científica justifica-se por si mesma. Mas, ao mudar, devemos manter e preservar o que de bom foi construído.

Frisando isto, pedindo perdão pela brevidade e provavelmente sendo um pouco injusto, eu diria que as mudanças devem ser na direção das pós-graduações e das pesquisas brasileiras justificarem-se indo além de buscar contribuir para o chamado “conhecimento científico universal” e de buscar a excelência em escrever artigos para revistas estrangeiras, afinal este é o sumo dos critérios de excelência da Capes.

E como ir além? Voltando-se mais para as condições e os problemas brasileiros, identificados no ensino, na extensão e no funcionamento administrativo da própria UFRJ, situando e localizando os conhecimentos produzidos e desenvolvendo suas próprias entidades de conhecimento, ao invés de replicar, sem crítica e seleção, as entidades de conhecimento que nos chegam e que vamos buscar, dos países que nos servem de modelo.

Conexão UFRJ – Como superar tal situação?

Ivan da Costa Marques – A globalização não traz situações de uniformidade. A chamada pesquisa global ou internacional é a pesquisa localizada em uma rede específica. Se por um lado o global tem interseções com nossos locais, por outro lado muitos de nossos locais não estão situados no global.

E nosso país é imensamente rico em conhecimentos que permanecem à margem de uma academia que pauta seus objetivos unicamente pelo chamado global e internacional. Talvez se possa dizer que o “programa forte” se resumiria à maior ousadia na criação de conhecimento próprio, local, situado e robusto, resistente às controvérsias, na direção da ação direta e mais horizontal, em tensão com um conhecimento que se sente mais à vontade, inserindo-se nos percursos das ideias que já recebemos dos países das metrópoles que nos servem de modelo.

Um tanto ironicamente, a ideia de um programa forte de pesquisa vincula a ideia da Antropofagia brasileira à ideia do Iluminismo europeu ao tentar fazer a pesquisa na UFRJ escapar das prisões epistemológicas da chamada globalização ou internacionalização ou, melhor dizendo, das ciências europeias.

O movimento Iluminista europeu ousou saber para além do conhecimento revelado, religioso, monopolizado pela Igreja, sem jogá-lo no lixo, para colocar em cena a ciência moderna. A ideia da Antropofagia, de devorar o estrangeiro apropriando-se de suas qualidades, talvez indique mais caminhos para que nossa pesquisa ouse saber para além do conhecimento científico europeu, sem jogá-lo no lixo indiscriminadamente, o que, além do mais, seria agora impossível, para colocar em cena a imensa riqueza dos conhecimentos de nossos coletivos locais.