Interessado na subjetividade das pessoas que servem como cobaias para pesquisas científicas, o professor da University of New York, Roberto Abadie analisou o assunto em palestra na última quarta-feira (29/06), no auditório do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc/UFRJ).

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Um novo olhar sobre a questão das cobaias humanas

Interessado na subjetividade das pessoas que servem como cobaias para pesquisas científicas, o professor da University of New York, Roberto Abadie analisou o assunto em palestra na última quarta-feira (29/06), no auditório do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (Iesc/UFRJ).

Pagar ou não pagar pessoas para desempenhar o papel de cobaia. Eis a questão? Para o médico, antropólogo e professor da University of New York, doutor Roberto Abadie, esse parece ser apenas um dos questionamentos a ser feito e, não, o principal. Interessado mais na subjetividade das pessoas envolvidas nesse processo, tema de seu livro The Professional Guinea Pig (A cobaia profissional), o especialista falou o sobre o assunto em palestra na última quarta-feira (29/06), no auditório do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva – Iesc/UFRJ.

Nos Estados Unidos, essa prática de oferecer dinheiro para recrutar “voluntários” na fase 1 dos testes clínicos, na qual se verifica se a droga é segura ou não, é comum. Exigindo apenas que as pessoas sejam saudáveis, sem nenhum tipo de problema psicológico ou crônico, certas pessoas sentem-se atraídas pela oportunidade de ganhar dinheiro, sem a necessidade de ter uma boa qualificação. Contudo, elas acabam por tornar o que seria apenas uma “ajuda remunerada à ciência” em trabalho, muitas vezes, participando de mais de um estudo por vez. Os testes viram o “ganha pão” dessas pessoas.

“Essa minha veia aqui valeu 5 mil dólares”, diz um dos personagens do documentário produzido pelo doutor Roberto Abadie, na Philadelphia, em uma comunidade anarquista, onde desenvolveu o estudo. Mantendo o anonimato de suas fontes, para protegê-las, o antropólogo passou a sua pesquisa focando apenas nos personagens. Quem são essas pessoas? Como escolhem os testes que vão fazer? O quanto o dinheiro permeia a sua decisão de tornar-se uma cobaia? Essas pessoas têm a percepção dos riscos envolvidos?

O que Abadie pode verificar é que a decisão de participar de um teste clínico vem antes do conhecimento dos riscos envolvidos. Vislumbrando nos testes o seu trabalho, as consequências passam a não importar tanto. O que há, segundo palavras do antropólogo, é um desprendimento do corpo e uma profissionalização das cobaias. “É como se eu fosse um segurança de prédio”, diz um dos entrevistados. “Não faço nada. Fico ali parado. Eu deixo as pessoas me pagarem pelo controle que exercem sobre mim”.

Tédio e desconforto. São esses os sentimentos relatados pelas cobaias profissionais entrevistadas. “Solicitam que você suporte algo que lhe aconteça”, completa um outro personagem do estudo. Para Abadie, a indústria farmacêutica é cínica. Atribui a essas pessoas o nome de voluntários, mas na verdade são profissionais. Assinar o termo de consentimento de riscos, mais da uma proteção ao sujeito da pesquisa, é uma forma de eximir a universidade, o Estado e a indústria de qualquer tipo de culpa ou dever maior sobre um possível acidente que venha a acontecer. “Na maioria das vezes, as pessoas não têm conhecimento real dos riscos. Isso vai ocorrendo, de fato, depois que a pessoa já está no teste”, afirma o antropólogo.

A grande questão para Abadie sobre o pagamento dessa atividade é o fato de que o regulamento ético americano reprime o uso de recursos coativos para recrutar voluntário e, nesse caso, nada é feito ou falado. Para o antropólogo, o que fazem com essas pessoas é um tipo de coação. Oferecem dinheiro, altas quantias, a pessoas que necessitam dele, que vem nessa oferta de dinheiro “fácil” seu ganha pão. Perdem sua identidade, ferem suas ideologias, prostituem seu corpo à Ciência. “Qualquer pensamento quanto ao risco é suprimido, pois fazer isso culminaria no não aceitamento da posposta e, logo, não teriam como sobreviver”.

“Não dá para ter uma sociedade desigual e ética ao mesmo tempo”, desabafa Abadie. E isso, continua ele, já ultrapassou o nível da ética. É uma questão de saúde pública, que envolve tanto a proteção desses profissionais, quanto a população que entrará em contato com o remédio. “As cobaias profissionais se submetem a mais de um teste por vez, e a validade dos resultados desses testes acaba tornar-se questionável. O que atinge os consumidores finais”, explica ele.

Assim, Abadie diz que a solução para os Estados Unidos seria o que já existe na União Européia, um registro que mapeasse as participações das pessoas nesses testes. Sobre o Brasil, apesar de elogiar a nossa regulação sobre o assunto, ele duvida da capacidade de controle e de fiscalização dessas práticas. Não por incompetência, mas pelos métodos utilizados por essas empresas para atrair pessoas vulneráveis. “Em tese, não há diferença entre teoria e prática. Mas na prática, tem”.

A fase 1 dos testes clínicos ainda não é realizada no Brasil, mas a 2 e a 3, sim. Contudo, há uma grande probabilidade de que se comece a realizá-la aqui, e as indústrias americanas já vislumbram o Brasil, a China e a Índia como alvo, pois nesses países as pessoas não têm contato com esse tipo de prática ainda e isso para os resultados das pesquisas é bom. Nos EUA, das pessoas que se propõe a participar dos testes, todas já participaram de mais de um. O público alvo já está ficando desgastado. “Há que se ter cuidado”, alerta doutor Roberto Abadie.