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Roteirista de Mutum discute cinema e literatura

 “Meu caso com Guimarães Rosa é de amor profundo”, confessou nesta quinta (14/05) no Moniz Aragão, Ana Luiza Costa, roteirista de Mutum, eleito o melhor filme do Festival do Rio de 2007 e indicado para o Festival de Cinema de Cannes. Escritora de muitos livros sobre o autor mineiro, Ana falou sobre o processo de transformação da literatura em cinema para os participantes do projeto “Colisões”, iniciativa cultural resultado da parceria entre a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Nova Iguaçu e o Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ.

O longa-metragem dirigido por Sandra Kogut é uma adaptação de Miguilim, uma das novelas que compõem o livro Corpo de baile, escrito por Guimarães Rosa e publicado em 1956. Mas apesar de ser uma adaptação, Mutum se diferencia do que normalmente é produzido para o gênero por não manter as falas do original.

– Eu sempre impliquei com o fato da linguagem trabalhada, bonita de se ler, de Guimarães, estar no cinema. Geralmente, os personagens ficam artificiais quando declamam frases literárias – opinou a roteirista.

E foi na proposta de Kogut, levar para as telonas o que a literatura deixou de mais marcante, que ela encontrou o caminho para montar o esqueleto do filme. “A pergunta deveria ser sempre: o que a gente quer ver no cinema? Foi uma oportunidade de descobrir o que é essencial, fazendo com que eu entendesse melhor certas cenas”, comentou.

No set

Segundo Ana, mesmo desafios na hora da construção do set foram superados com a busca do que é realmente importante. A cena do filme em que mãe e filhos brincam de corrida de barcos com folhas exemplifica bem essa questão. No livro, a família sairia para caçar vaga-lumes no campo, mas na hora das filmagens os produtores descobriram que não havia tais insetos naquela região de Minas, onde o filme foi rodado. E mesmo trazendo de Macaé, no Rio de Janeiro, eles não sobreviveriam a uma viagem de avião.

– Os produtores me disseram que eu teria que esquecer a cena. Mas era impossível. Ela era importante para que fosse reconhecida a sintonia entre a mãe e um dos filhos. Foi apenas quando tinha saído do set que me dei conta de que não importava o lugar para isso – explicou a autora.

A solução para o problema exigiu o conhecimento das obras do autor. A doutora em Literatura Comparada se lembrou de um trecho de outro livro de Rosa, cujo cenário poderia se encaixar bem àquela necessidade, e o adaptou. Assim, conseguiu se manter na linha do escritor de Grande Sertão:Veredas, mesmo com as dificuldades.

O jocoso Guimarães Rosa

A forma como Ana Luiza encontrou uma alternativa para a cena só foi possível porque ela já se dedicava inteiramente a conhecer os trabalhos de Guimarães, assunto que marcou sua vida acadêmica. Mas nem sempre foi assim:

– A primeira tentativa de ler Guimarães Rosa se deu com Grande Sertão:Veredas. Não consegui entender nada. Anos depois, li e me entreguei completamente.

Segundo ela, algumas características marcam a literatura do mineiro, como a linguagem própria, resultado da apropriação de palavras de diversos idiomas. “Ele tinha horror ao senso comum, o que ele chamava de linguagem desgastada. Quando queria expressar algo e não encontrava a palavra na nossa língua, buscava em outra”, ressaltou.

Outra peculiaridade de Guimarães é a forma de trabalhar a estrutura do texto. Ao final da história de Miguilin, uma revelação é feita de forma que o leitor acaba impelido a recomeçar a leitura com uma visão completamente diferente. De acordo com a escritora de Os Nomes do Rosa, esse é um procedimento que Guimarães gosta muito e que mostra seu lado jocoso.

– Cada vez que você lê, você descobre coisas novas. O que eu acho legal é que eu descubro trechos que nunca tinha visto. É como se o livro te pregasse uma peça – brinca a roteirista.

Apesar de considerar extremamente valiosa a experiência de adaptar justamente um livro de Rosa, houve um revés do mercado cinematográfico, pois assim que foi feita a relação entre o escritor e o filme que estava sendo lançado etiquetou-se o produto como “cult”. “O filme foi gravado no sertão mineiro. Mostra cenas do cotidiano, mas ficou injustamente arremessado ao nicho cult”, lamenta a roteirista.

Guimarães Rosa escreveu 11 livros, sendo dois póstumos, e se consagrou na literatura nacional com a obra Grande Sertão: Veredas. Foi eleito por unanimidade em 1963 para ingressar na Academia Brasileira de Letras. Mas três dias após o discurso de posse, em 1967, faleceu no Rio de Janeiro.